Pois voltemos ao porco. Estava ele a caminhar pela rua e arfar o focinho sem, contudo, abanar o pequeno rabo espiralado. Não sei do conhecimento de anatomia suína do leitor, mas talvez seja adequado esclarecer que, devido ao formado da cauda ou quiçá à ausência de musculatura específica para tal fim, os porcos não costumam contar com uma grande coordenação rabial. Por isso, o rabo balança apenas com o chachoalhar do lombo ao qual se prende sem nenhuma interferência voluntária do animal. Feita a explanação biológico cultural, o fato é que o porco, ao contrário dos outros animais do Cansado, despertava não somente a piedade dos vizinhos, como também a gula de um deles.
Pança, que também tinha outro nome de batismo esquecido pelo tempo, começou a lançar olhos para o porco. Foi quando o bicho começou a crescer e a engordar com os cuidados do povo. De leitão magro de cofrinho de quermesse, o dito criou bochechas e dobrinhas tornando-se um belo e rechonchudo porco, digno de entupir as artérias do mais glutão americano comedor de bacon. Há semanas, Pança só enxergava um lombo com farofa passar em frente de sua varanda todo fim de tarde. Aquilo era tentação demais para quem não tinha nem para o colchão-duro do açougue da esquina.
Um belo dia, o gordo Pança decidiu atrair o belo e gordo porco. Pegou os melhores restos de comida do almoço colocou-os numa lata e a esquentou para que cheirasse por todo o quarteirão. Em pouco tempo, uma silhueta suína apontou no horizonte, no começo da rua, e aproximou-se saltitante, sem perder, porém, a pachorra indispensável à peculiar porquice. Bem em frente à casa do Pança, o focinho arfou frenético, parou o porco que vinha bem atrás dele e o direcionou ao portão do Pança, que estava aberto. O larápio levou o porco para os fundos da casa. E ninguém mais soube do porco do Cansado. Daquela noite em diante, a vizinhança ouviria uma gritaria infernal entre o Pança e a sua mulher. Ninguém entendia por inteiro as frases do arranca-rabo, mas entre um palavrão e outro eram nítidas as palavras "porco" e "cansado".
Por fim, numa madrugada sem lua nem estrelas, um grito estridente, rápido e contorcido foi ouvido da casa do Pança. Ninguém foi ver o que era. Alguns fizeram uma prece de despedida e até choraram pelo porco do Cansado. Naquela noite não houve gritaria. Na manhã seguinte, a mulher do Pança passou de porta em porta avisando que haveria feijoada no almoço, que todos estavam convidados e que não, ela não precisava de ajuda, faria tudo sozinha na cozinha, mas que não faltasse nenhum vizinho porque a comida era muita.
E lá estavam todos. Sentados em uma longa mesa no meio da rua, os vizinhos se acomodaram fitando a mulher do Pança com olhares acusadores, mas sem falar nada para não perder aquela refeição de aroma inebriante que já invadia todas as casas. Nada menos do que cinco panelões cheios foram enfileirados na mureta da casa do Pança. Quando todos se sentaram, uma criança foi a única que notou uma ausência na mesa e perguntou à cozinheira: "onde está o Pança?" A mulher virou a cabeça como se olhasse para a própria casa: "ele se foi! Estou comemorando a minha separação!" respondeu a mulher com descaso. E ninguém mais no bairro soube do homem.
No mesmo dia à tarde, alguns vizinhos foram à casa do Cansado motivados pela estranheza de ele não ter ido reclamar do assassinato de seu porco e nem ao menos reivindicar seus restos mortais na feijoada. A porta, como sempre, estava aberta. Bateram nela. Ninguém apareceu. Entraram e o cheiro de fezes de animais quase os derrubou. Encontraram no quarto um esqueleto em cima da cama. Estava perfeitamente limpo e com várias marcas de dentes que pareciam ser de um porco. "Enfim, descansou!" foi só o que um deles disse.
Dias depois da inesquecível feijoada de despedida do Pança e da descoberta arqueológica na casa do Cansado, um berro foi ouvido na casa que patrocinara o regabofe. A ex-mulher do Pança havia saído para o trabalho, de modo que a casa deveria estar supostamente vazia, e os gritos, supostamente extintos. Os vizinhos mais intrépidos encostaram o ouvido na porta da casa do Pança e bateram: "tem alguém aí?" Como resposta, ouviram um nítido e indefectível "óinc!".