Uma das coisas boas que a pandemia me proporcionou foi a visita quase semanal de uma pessoa de 80 centímetros de altura. Lívia é uma mesticinha mezzo caucasiana, mezzo japinha, um par de olhinhos meio puxados, meio amendoados, que, no auge de seu um ano e meio de idade, se divertia batendo na porta do meu escritório doméstico no fim do expediente do teletrabalho.
Tuc, tuc, tuc... uma pancadinha quase inaudível na porta anunciava
do outro lado um rostinho bochechudo deitado sobre o ombro que me sorria sapeca.
Abrir a porta era o melhor happy hour do mundo. A pequena me enchia de
sol aqueles dias sombrios em que ninguém podia sair de casa. Filha do meu
cunhado, ela se divertia ao deixar um pouco a própria casa e explorar o
apartamento dos tios. Nosso cumprimento era um içamento da criatura, uma
beijoca na bochecha e uma fungada em seu cangote feita só para provocar
cócegas. “Coquinha non, Pabo!”, pedia a pequenina entre risadas.
No meu colo, ela me observava fechar as últimas janelas do
Windows, me despedir do trabalho e desligar o computador. Às vezes eu colocava para
tocar um pop rock, só para vê-la dançar sorrindo, balançando a cabeça no ritmo da
música. Depois, ela pedia papel e lápis e desenhávamos juntos mundos muito loucos
nascidos das nossas cabeças de criança.
Ela foi a minha melhor professora de mindfullness, a
meditação da atenção plena. Numa tardinha de sexta-feira, a coloquei sobre seu
velocípede com alça de carrinho de bebê e fomos dar uma volta no quarteirão para
arejar as ideias. Silenciosa, ela observava tudo com uma atenção profunda. Chegamos
a uma banquinha de rua em que compramos biscoito de polvilho, uma das paixões
de Lívia. “Que coisa linda! Sua filha?”, perguntou um senhor também freguês da
banca. “Sim, senhor. Como não haveria de ser?”, eu respondia matreiro piscando
pra ela. Serena, Lívia observava o diálogo, sem me desmentir.
A caminhada seguiu com o nosso costumeiro silêncio quando
ela, subitamente, espantou-se: “pipiu!”. Apontando o dedo, ela mostrava um passarinho que ciscava no chão. Parei o carrinho e
olhei também. Ambos ficamos contemplando o animalzinho pular no gramado a
poucos metros de nós. O pássaro ciscava, bicava o chão, virava a cabeça, procurava algo,
ficava de frente, de lado e de costas para nós. Lívia observava tudo com
inacreditável atenção, olhos vidrados no bichinho totalmente absorta. Mal
piscava. Ficamos mais de um minuto ali. Ela não se entediou nem pediu para seguir,
como se aquele passarinho fosse a coisa mais importante do mundo.
Por fim, o bicho se cansou da audiência e alçou voo. Lívia o
acompanhou com o dedo e com os olhos até que desaparecesse entre os altos galhos.
Seguimos o passeio, ela feliz, eu modificado. Tomei emprestado o olhar dela e pus-me
a acompanhá-la nessa contemplação. De repente, tudo era absolutamente incrível.
As crianças correndo no parque, o cãozinho que cheirava a grama, o velho lendo
jornal na praça, o vento que balançava as flores, a luz do sol... nada era
banal, as coisas pequeninas mereciam uma atenção minuciosa porque tudo era vida
acontecendo, tudo era fabuloso. Éramos nós dois respirando, admirando o mundo em um delicioso
silêncio.
As maiores fontes da sabedoria estão nos extremos da existência.
Temos nos mais velhos a história que nos poupa das pedras enfrentadas por eles.
Nos ultrajovens, retomamos a simplicidade perdida, fonte do sorriso sincero que
esquecemos que um dia tivemos.
Chegamos em casa transformados. Uma Lívia que conheceu um pássaro,
um Fábio que ganhou asas...