Foi se sentar na mesa em que rolava o debate mais acalorado. O casal de amigos discutia alto. Ela gesticulava passando os braços a poucos milímetros da garrafa de cerveja. Ele ponderava discreto batendo a lateral das mãos na mesa protegendo o próprio copo:
– ...eu só estou dizendo que sou um apreciador desse tipo de
paisagem.
– Mas nós temos o direito, sim, de devastar a mata nativa e
todo o entorno, ou deixá-la como está, e ninguém tem o direito de interferir.
O recém-chegado, biólogo e ambientalista que era, e com pós-graduação na área,
não poderia ficar de fora do assunto:
– Veja bem, não posso concor...
– ...eu sou a proprietária da área e ninguém tem nada a ver
com o que eu faço com ela. Interrompeu-o a mulher como se ele nem estivesse na
mesa.
O outro continuou fitado na interlocutora e também o
ignorou:
– Eu só estou dizendo que acho bom manter pelo menos a
vegetação de topo de morro.
Ficou feliz pelo amigo ter uma visão mais sensata do assunto,
ao mesmo tempo em que sentiu uma pontada de decepção ao descobrir que a amiga
de longa data não tinha o tinha o mínimo entendimento sobre o papel ambiental
da cobertura vegetal. Virou-se:
– Garçom, um copo, por favor.
O garçom era o único que o ouvia ali. Metade da família da
mesa ao lado parecia acompanhar interessada a discussão, duas crianças se
entretinham com celulares, enquanto os pais, mudos, revezavam entre trocar
olhares marotos entre si e fitar a mesa dos três amigos.
A amiga não parou nem fez questão de notar a chegada do
amigo, do garçom e agora do copo:
– Só quem mantém a mata nativa sabe o transtorno que é para
cuidar – bradou a moça.
– Eu entendo, mas há razões nos dois lados...
Achou aí que o cara iria defender a causa ambiental, aproveitou
para tirar a garrafa do trajeto afoito dos braços da menina e encheu o próprio
copo. O amigo nem parou de falar:
–...sei que a manutenção dá trabalho. Mas acho que é bom manter,
pelo menos, a vegetação de topo de morro. Acho bonita. Sou um apreciador da
mata, cada uma é de um jeito, a primeira curiosidade que tenho é saber como é o
tipo de cobertura, se é alta ou rasteira, abundante ou rala, adoro me perder
nesses matagais...
A cabeça do especialista já se contorcia pelo amigo que usava
argumentos estéticos para defender algo que é muito mais do que decorativo, mas
deixou-o continuar.
– ... agora, eu concordo com você que a mata ciliar
atrapalha muito. Apesar de muitos especialistas dizerem que ela protege as margens,
é bem verdade que ela dificulta a limpeza, mas principalmente atrapalha, e
muitas vezes até inviabiliza, a execução de “serviços ambientais” – as duas
últimas palavras saíram acompanhadas de aspas feitas com os dedos.
Foi o suficiente para o seu ego do especialista gritar por
dentro e ele, por fora:
– BASTA! Ouvi muita bobagem de vocês aqui. Agora vocês vão
me ouvir.
Os dois pela primeira vez o olharam e ele desfiou seu
rosário ambiental de ecologista. Contou dos ciclos das florestas, do equilíbrio
delicado entre flora e fauna, da vegetação protetora da erosão.... e blá, blá,
blá... terminando o discurso com as abelhinhas que dependem da mata nativa para
se reproduzir e assim polinizar o planeta!
– Terminou? Eu vou ao banheiro – levantou a amiga da mesa
com desdém e falta de paciência.
Virou-se ele ao amigo:
– O que foi? Falei alguma besteira?
– A gente discutia depilação íntima feminina.