Primeiro de Abril. Dizem que nesse dia começava o ano, como não começa mais, virou o Dia da Mentira. Mentira. A verdade (se é que ela existe) é que a humanidade sempre gostou de mentir e quis ter pelo menos um dia para fazer isso sem ter um dedo apontado na cara: “mentiroso!” Como se existisse alguém na face da Terra que não o fosse.
Você nunca se perguntou por que, no meio de tantas datas importantes, existe uma só para homenagear a mentira? Por que não existe o Dia Internacional da Sinceridade, o Dia Nacional da Honestidade ou, pelo menos, um feriadinho municipal da Verdade Nua e Crua? Porque além de atentar ao pudor, essa crueza toda causaria uma tremenda congestão.
Alguém já ouviu um “como você envelheceu, meu caro! Cê tá acabadão!” quando encontrou um antigo amigo na rua? Ou ainda: “Dinorá, seu botox ficou podre. Você tá uma monstra, menina!” Claro que não. Todos achamos lindo mentir. Por isso, mentimos até ao dizer que mentir é feio, quando feio mesmo é chamar o outro de feio, mesmo que, na sinceridade, ele se enquadre entre horroroso e medonho.
Sejamos honestos (na medida do possível): que guerras ou eleições foram vencidas com a verdade? Estamos atolados em mentiras desde os primórdios. Para tirar os seus corpinhos nus da reta, Adão alegou ter sido aliciado por Eva que por sua vez se confessou seduzida pela cobra. E se Deus tivesse aberto o jogo com os dois, eles jamais teriam comido a maçã se soubessem que teriam que trabalhar até morrer dependendo de uma pensão ridícula do INSS.
Mentimos até quando estamos sozinhos, mas somos hipócritas demais para decretar um feriado mundial e sair às ruas para a parada do Orgulho Mitômano. A comissão de frente estaria invariavelmente nas mãos dos políticos, seguidos logo após pelo carro abre-alas dos vendedores de automóveis e dos corretores de imóveis. Finalmente, na parte nobre do desfile irão aqueles que têm formação e a devida habilitação para mentir: os advogados, os contadores, os publicitários e os jornalistas.
Os advogados por defenderem a verdade do cliente. O grau de persuasão dessa verdade depende sempre de quanto esse cliente poderá gastar para fazê-la realmente ter existido. Quanto mais investir nisso, mais fará a sua verdade ser a mais verdadeira perante a lei.
Os contadores garantiriam seu lugar na parada por sua prestidigitação com os números. Sua magia indecifrável em criar e ocultar cifras jamais teve paralelo nem em culturas dadas à feitiçaria.
Os publicitários desfilariam no mais sofisticado carro alegórico, orgulhosos por nos fazer acreditar que precisamos de uma iogurteira elétrica de dez velocidades. Eles carregam o mérito de mexer com os nossos sentimentos a ponto de entrarmos em depressão profunda por não conseguir fazer um iogurte em nossa própria casa.
Finalmente, os jornalistas. A posição na rabeira do evento é estratégica. Nas mãos desses profissionais reside a metamorfose da mentira em verdade e vice-versa. Nós, jornalistas, construímos mentiras absurdas dizendo somente verdades e criamos incontestáveis verdades simplesmente propagando as mais deslavadas mentiras.
Neste 1º de Abril, saiamos todos à Parada dos Mentirosos. Assuma o seu lado falso, que é o seu único verdadeiro. Fox Mulder que me desculpe, mas é a mentira que está lá fora. A verdade nunca saiu do armário. A mentira é patrimônio da humanidade. Tratemo-la como tal. Já disparara Millôr: “Ninguém é dono da verdade. Mas a mentira tem acionista à beça.” Não é verdade?
29 março 2007
20 março 2007
A praga do Rubem Alves
Não costumo abrir espaços a textos de outrem, todavia o que segue abaixo está divino.
Además... é bom dar uma chance para essa garotada nova que está começando. Esse Rubinho Alves ainda vai longe!
Espero que ele se lembre de mim quando estiver famoso e por cima da carne seca.
Um abraço ao Rubem e outro especial ao Bento XVI e às suas imprecações contra segundos casamentos, muçulmanos, lésbicas e simpatizantes.
"Meu filho, se continuares a cuspir pérolas, terminarás senhor do mundo!"
Bush Pai a Bush Filho quando este soltou uma pataquada blasfematória contra Bush Espirito Santo.
A praga
Por Rubem Alves
É BOM atentar para o que o papa diz. Porta-voz de Deus na Terra, ele só pensa pensamentos divinos. Nós, homens tolos, gastamos o tempo pensando sobre coisas sem importância tais como o efeito estufa e a possibilidade do fim do mundo. O papa vai direto ao que é essencial: "O segundo casamento é uma praga!" Está certo. O casamento não pertence à ordem abençoada do paraíso. No paraíso não havia casamento. Na Bíblia não há indicação de que as relações amorosas entre Adão e Eva tenham sido precedidas pelo cerimonial a que hoje se dá o nome de casamento: o Criador, celebrante, Adão e Eva nus, de pé, diante de uma assembléia de animais, tudo terminando com as palavras sacramentais: "E eu, Jeová,vos declaro marido e mulher. Aquilo que eu ajuntei os homens não podem separar..."
Os casamentos, o primeiro, o segundo, o terceiro, pertencem à ordem maldita, caída, praguejada, pós-paraíso. Nessa ordem não se pode confiar no amor. Por isso se inventou o casamento, esse contrato de prestação de serviços entre marido e mulher, testemunhado por padrinhos, cuja função é, no caso de algum dos cônjuges não cumprir o contrato, obrigá-lo a cumpri-lo.
Foi um padre que me ensinou isso. Ele celebrava o casamento. E foi isso que ele disse aos noivos: "O que vos une não é o amor. O que vos une é o contrato". Aprendi então que o casamento não é uma celebração do amor. É o estabelecimento de direitos e deveres. Até as relações sexuais são obrigações a ser cumpridas.
Agora imaginem um homem e uma mulher que muito se amam: são ternos,amigos, fazem amor, geram filhos. Mas, segundo a igreja, estão em estado de pecado: falta ao relacionamento o selo eclesiásticolegitimador. Ele, divorciado da antiga esposa, não pode se casar de novo porque a igreja proíbe a praga do segundo casamento. Aí os dois, já no fim da vida, são obrigados a se separar para participar da eucaristia: cada um para um lado, adeus aos gestos de ternura... Agora está tudo nos conformes. Porque Deus não enxerga o amor. Ele só vê o selo eclesial.
O papa está certo. O segundo casamento é uma praga. Eu, como já disse, acho que todos são uma praga, por não ser da ordem paradisíaca, mas da maldição. O símbolo dessa maldição está na palavra "conjugal": do latim, "com"= junto e "jugus"= canga. Canga, aquela peça pesada de madeira que une dois bois. Eles não querem estar juntos. Mas a cangaos obriga, sob pena do ferrão...
Por que o segundo casamento é uma praga? Porque, para havê-lo, é preciso que o primeiro seja anulado pelo divórcio. Mas, se a igreja admitir a anulação do primeiro casamento, terá de admitir também que o sacramento que o realizou não é aquilo que ela afirma ser: um ato realizado pelo próprio Deus. Permitir o divórcio equivale a dizer: osacramento é uma balela. Donde, a igreja é uma balela... Com o divórcio ela seria rebaixada do seu lugar infalível e passaria a ser apenas uma instituição falível entre outras. A igreja não admite o divórcio não é por amor à família. É para manter-se divina...
A igreja, sábia, tratou de livrar seus funcionários da maldição do amor. Proibiu-os de se casarem. Livres da maldição do casamento, os sacerdotes têm a suprema felicidade de noites de solidão, sem conversas, sem abraços e nem beijos. Estão livres da praga...
Además... é bom dar uma chance para essa garotada nova que está começando. Esse Rubinho Alves ainda vai longe!
Espero que ele se lembre de mim quando estiver famoso e por cima da carne seca.
Um abraço ao Rubem e outro especial ao Bento XVI e às suas imprecações contra segundos casamentos, muçulmanos, lésbicas e simpatizantes.
"Meu filho, se continuares a cuspir pérolas, terminarás senhor do mundo!"
Bush Pai a Bush Filho quando este soltou uma pataquada blasfematória contra Bush Espirito Santo.
A praga
Por Rubem Alves
É BOM atentar para o que o papa diz. Porta-voz de Deus na Terra, ele só pensa pensamentos divinos. Nós, homens tolos, gastamos o tempo pensando sobre coisas sem importância tais como o efeito estufa e a possibilidade do fim do mundo. O papa vai direto ao que é essencial: "O segundo casamento é uma praga!" Está certo. O casamento não pertence à ordem abençoada do paraíso. No paraíso não havia casamento. Na Bíblia não há indicação de que as relações amorosas entre Adão e Eva tenham sido precedidas pelo cerimonial a que hoje se dá o nome de casamento: o Criador, celebrante, Adão e Eva nus, de pé, diante de uma assembléia de animais, tudo terminando com as palavras sacramentais: "E eu, Jeová,vos declaro marido e mulher. Aquilo que eu ajuntei os homens não podem separar..."
Os casamentos, o primeiro, o segundo, o terceiro, pertencem à ordem maldita, caída, praguejada, pós-paraíso. Nessa ordem não se pode confiar no amor. Por isso se inventou o casamento, esse contrato de prestação de serviços entre marido e mulher, testemunhado por padrinhos, cuja função é, no caso de algum dos cônjuges não cumprir o contrato, obrigá-lo a cumpri-lo.
Foi um padre que me ensinou isso. Ele celebrava o casamento. E foi isso que ele disse aos noivos: "O que vos une não é o amor. O que vos une é o contrato". Aprendi então que o casamento não é uma celebração do amor. É o estabelecimento de direitos e deveres. Até as relações sexuais são obrigações a ser cumpridas.
Agora imaginem um homem e uma mulher que muito se amam: são ternos,amigos, fazem amor, geram filhos. Mas, segundo a igreja, estão em estado de pecado: falta ao relacionamento o selo eclesiásticolegitimador. Ele, divorciado da antiga esposa, não pode se casar de novo porque a igreja proíbe a praga do segundo casamento. Aí os dois, já no fim da vida, são obrigados a se separar para participar da eucaristia: cada um para um lado, adeus aos gestos de ternura... Agora está tudo nos conformes. Porque Deus não enxerga o amor. Ele só vê o selo eclesial.
O papa está certo. O segundo casamento é uma praga. Eu, como já disse, acho que todos são uma praga, por não ser da ordem paradisíaca, mas da maldição. O símbolo dessa maldição está na palavra "conjugal": do latim, "com"= junto e "jugus"= canga. Canga, aquela peça pesada de madeira que une dois bois. Eles não querem estar juntos. Mas a cangaos obriga, sob pena do ferrão...
Por que o segundo casamento é uma praga? Porque, para havê-lo, é preciso que o primeiro seja anulado pelo divórcio. Mas, se a igreja admitir a anulação do primeiro casamento, terá de admitir também que o sacramento que o realizou não é aquilo que ela afirma ser: um ato realizado pelo próprio Deus. Permitir o divórcio equivale a dizer: osacramento é uma balela. Donde, a igreja é uma balela... Com o divórcio ela seria rebaixada do seu lugar infalível e passaria a ser apenas uma instituição falível entre outras. A igreja não admite o divórcio não é por amor à família. É para manter-se divina...
A igreja, sábia, tratou de livrar seus funcionários da maldição do amor. Proibiu-os de se casarem. Livres da maldição do casamento, os sacerdotes têm a suprema felicidade de noites de solidão, sem conversas, sem abraços e nem beijos. Estão livres da praga...
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14 março 2007
Palavras contagiosas
Numa linda manhã de agosto dei à luz um spam. E parece que a luz gostou demais do spam que lhe dei. A concepção deu-se num sofá diante da TV, local que muitos acreditam ter sido abandonado pelo pensamento crítico. Pois foi bem ali que me surgiu com cabeça, corpo e membros “O Vendedor de Palavras”, inspirado em uma entrevista de Nélida Piñon.
A criança cresceu, tomou corpo e viaja o Brasil de norte a sul. Até chegou a Portugal. Já ajudou a levar sol a fins-de-semana chuvosos, ilustrou aulas de português, alimentou debates em turmas de graduação em Comunicação Social, fez ler gente que não gosta das letras e ainda dá muitas flores e frutos mundo afora.
Há um forte vírus por trás das palavras que contagia de coisas boas quem o recebe. Algo bem mais poderoso do que os spams de trojans, vírus destrutivos, publicidade indesejada e mensagens negativas. Que se proliferem os microorganismos da felicidade incubados nas letras para “esclarecer de qual combustão a paixão é feita, para que a vista lhe escureça de repente e as palavras tenham febre*”.
Um febril abraço a todos, em especial aos leitores cujos e-mails ainda não consegui responder,
Fábio Reynol
* artigo “Conhece-te a ti mesmo”, Nélida Piñon.
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07 março 2007
Carta ao Arqueólogo do Futuro
O texto abaixo foi fruto de um desafio proposto pelo site Agência Carta Maior (http://agenciacartamaior.uol.com.br), escrever uma carta a um arqueólogo de um futuro distante, e me demandou um malabarismo mental viceral. Espero que o pessoal do site reconheça isso e pelo menos publique-o antes que o tal arqueólogo nasça.
O problema é que o site só propõe a tarefa a celebridades em geral. Escreveram ao arqueólogo Moacir Scliar, Jorge Furtado, Luis Fernando Veríssimo, Nando Reis, Frei Betto, Alfredo Bosi, Niéde Guidon, Maurício de Souza, Chico Anysio, Emir Sader, Ferreira Gullar, Soninha e outros expoentes e mentes famosas.
Claro que ninguém ainda entrou em contato comigo. Por isso, coloquei toda a minha pró-atividade (neologismo para cara-de-pau) em prática e enviei minha carta à Agência antes mesmo de me pedirem, e ainda melhor, antes mesmo de eu me tornar uma celebridade.
Que pelo menos a leiam!
Caro Arqueólogo do Futuro,
Se você está lendo isto é porque a nossa capacidade de destruição do planeta não era tão grande quanto pensávamos. Maior do que ela talvez só a nossa incompetência em completar um serviço que fazíamos tão bem: a aniquilação do nosso pequeno mundo.
Se sobrou alguma coisa da Terra, este texto deve lhe ter sido entregue por uma barata, espécie que julgávamos inferior a ponto de esmagarmos milhares de seus indivíduos debaixo de nossos pés. Por favor, não comente este assunto diante do bicho, apenas transmita-lhe nossas desculpas.
Como você obviamente não é terráqueo, aqui vai uma sinopse de nossa história. Nosso mini-planeta não tem nem cinco bilhões de aninhos. Apenas um menino perto dos 15 bilhões de anos do universo conhecido. No entanto, representantes desta espécie que lhe escreve só apareceram há apenas dois milhões e poucos anos.
A encrenca começou quando nossos pais decidiram descer das árvores, daí foi um pequeno passo para derrubá-las. Logo quiseram morar juntos em cidades para assim reunir os dejetos de todos e causar um impacto bem maior ao jogá-los no meio ambiente. Claro que toda aquela caca reunida só fez crescer os problemas e as doenças. Chegamos a descobrir pessoas que ainda viviam em florestas e em harmonia com a natureza. Dissemos a eles que eram atrasados e acabamos com eles e com suas florestas. Alcançamos enfim uma sociedade justa na qual todos comem, trabalham, têm acesso à saúde e à educação, contanto que preencham uma única condição: possuam dinheiro.
O que ninguém conseguiu me explicar é por que cientistas sérios chamaram esse processo de “evolução”. Se evoluímos até esta decadência, antes tivéssemos regredido ao sucesso. Mas a lógica nunca foi o nosso ponto forte. O fato é que conseguimos em menos de dois milhões de anos o que os dinossauros só obtiveram depois de 140 milhões, a extinção da própria espécie.
Escrevo do início do século XXI cristão - baseado no suposto ano do nascimento de um cara que demonstrou que era possível viver sem nos matar. Claro que nós o matamos. A adoção desse calendário foi mera formalidade prática. Dois terços de nossa população não dá ouvidos ao que o cara disse; o outro terço ouve, mas não pratica e ainda usa seu nome para arrancar dinheiro dos pobres.
Hoje, jogamos zelosa e diariamente seis bilhões de toneladas de dióxido de carbono na atmosfera. Por causa disso estamos sendo cozidos vivos. Esse gás ajuda a formar a tampa da panela que já começou a nos escaldar. A boa notícia é que descobrimos que alguns seres vivos absorvem o carbono expelido. São os vegetais, os quais fizemos o obséquio de arrancar de quase toda a superfície do planeta. Como resultado, a nossa jovem Terra é uma criança com um gigantesco enfisema pulmonar. Também gostaria de lhe dizer o que costumamos jogar em nossos rios antes de bebermos de suas águas. Porém não vou. Você não iria acreditar e ainda morreria de nojo de nós.
Podemos morrer por causa dessas coisas, todavia inventamos muitos outros meios de nos matar mantendo um mínimo de dignidade. Já detemos a incrível tecnologia de arrebentar o núcleo do átomo e estamos ansiosos por utilizá-la para arrebentar a cabeça de nossos conterrâneos inimigos, pulverizando o planeta deles. Sem nos importar (repare no nosso despojamento!) com o fato de que o planeta deles e o nosso são o mesmo. Assim que o primeiro artefato nuclear explodir, daremos início a um show pirotécnico de arrancar os cabelos, a pele e os membros. Não seremos destruídos por nenhuma espécie alienígena, civilização mais avançada ou chuva de meteoros. Morreremos de cabeça erguida (para aqueles que ainda a tiverem) orgulhosos por assumir as rédeas do próprio destino. De nossa aniquilação, cuidamos nós.
Caro arqueólogo, espero ter dado um panorama belo e suavizado de nossa rica e breve história. Para encerrar, atrevo-me a uma última observação científica. Não sou dado a obviedades, mas como você já pôde reparar, por aqui nunca existiu vida inteligente. Com exceção das baratas!
O problema é que o site só propõe a tarefa a celebridades em geral. Escreveram ao arqueólogo Moacir Scliar, Jorge Furtado, Luis Fernando Veríssimo, Nando Reis, Frei Betto, Alfredo Bosi, Niéde Guidon, Maurício de Souza, Chico Anysio, Emir Sader, Ferreira Gullar, Soninha e outros expoentes e mentes famosas.
Claro que ninguém ainda entrou em contato comigo. Por isso, coloquei toda a minha pró-atividade (neologismo para cara-de-pau) em prática e enviei minha carta à Agência antes mesmo de me pedirem, e ainda melhor, antes mesmo de eu me tornar uma celebridade.
Que pelo menos a leiam!
Caro Arqueólogo do Futuro,
Se você está lendo isto é porque a nossa capacidade de destruição do planeta não era tão grande quanto pensávamos. Maior do que ela talvez só a nossa incompetência em completar um serviço que fazíamos tão bem: a aniquilação do nosso pequeno mundo.
Se sobrou alguma coisa da Terra, este texto deve lhe ter sido entregue por uma barata, espécie que julgávamos inferior a ponto de esmagarmos milhares de seus indivíduos debaixo de nossos pés. Por favor, não comente este assunto diante do bicho, apenas transmita-lhe nossas desculpas.
Como você obviamente não é terráqueo, aqui vai uma sinopse de nossa história. Nosso mini-planeta não tem nem cinco bilhões de aninhos. Apenas um menino perto dos 15 bilhões de anos do universo conhecido. No entanto, representantes desta espécie que lhe escreve só apareceram há apenas dois milhões e poucos anos.
A encrenca começou quando nossos pais decidiram descer das árvores, daí foi um pequeno passo para derrubá-las. Logo quiseram morar juntos em cidades para assim reunir os dejetos de todos e causar um impacto bem maior ao jogá-los no meio ambiente. Claro que toda aquela caca reunida só fez crescer os problemas e as doenças. Chegamos a descobrir pessoas que ainda viviam em florestas e em harmonia com a natureza. Dissemos a eles que eram atrasados e acabamos com eles e com suas florestas. Alcançamos enfim uma sociedade justa na qual todos comem, trabalham, têm acesso à saúde e à educação, contanto que preencham uma única condição: possuam dinheiro.
O que ninguém conseguiu me explicar é por que cientistas sérios chamaram esse processo de “evolução”. Se evoluímos até esta decadência, antes tivéssemos regredido ao sucesso. Mas a lógica nunca foi o nosso ponto forte. O fato é que conseguimos em menos de dois milhões de anos o que os dinossauros só obtiveram depois de 140 milhões, a extinção da própria espécie.
Escrevo do início do século XXI cristão - baseado no suposto ano do nascimento de um cara que demonstrou que era possível viver sem nos matar. Claro que nós o matamos. A adoção desse calendário foi mera formalidade prática. Dois terços de nossa população não dá ouvidos ao que o cara disse; o outro terço ouve, mas não pratica e ainda usa seu nome para arrancar dinheiro dos pobres.
Hoje, jogamos zelosa e diariamente seis bilhões de toneladas de dióxido de carbono na atmosfera. Por causa disso estamos sendo cozidos vivos. Esse gás ajuda a formar a tampa da panela que já começou a nos escaldar. A boa notícia é que descobrimos que alguns seres vivos absorvem o carbono expelido. São os vegetais, os quais fizemos o obséquio de arrancar de quase toda a superfície do planeta. Como resultado, a nossa jovem Terra é uma criança com um gigantesco enfisema pulmonar. Também gostaria de lhe dizer o que costumamos jogar em nossos rios antes de bebermos de suas águas. Porém não vou. Você não iria acreditar e ainda morreria de nojo de nós.
Podemos morrer por causa dessas coisas, todavia inventamos muitos outros meios de nos matar mantendo um mínimo de dignidade. Já detemos a incrível tecnologia de arrebentar o núcleo do átomo e estamos ansiosos por utilizá-la para arrebentar a cabeça de nossos conterrâneos inimigos, pulverizando o planeta deles. Sem nos importar (repare no nosso despojamento!) com o fato de que o planeta deles e o nosso são o mesmo. Assim que o primeiro artefato nuclear explodir, daremos início a um show pirotécnico de arrancar os cabelos, a pele e os membros. Não seremos destruídos por nenhuma espécie alienígena, civilização mais avançada ou chuva de meteoros. Morreremos de cabeça erguida (para aqueles que ainda a tiverem) orgulhosos por assumir as rédeas do próprio destino. De nossa aniquilação, cuidamos nós.
Caro arqueólogo, espero ter dado um panorama belo e suavizado de nossa rica e breve história. Para encerrar, atrevo-me a uma última observação científica. Não sou dado a obviedades, mas como você já pôde reparar, por aqui nunca existiu vida inteligente. Com exceção das baratas!
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06 março 2007
Os Diálogos da Vagina
Aquele outdoor se exibia de tal maneira que era mais fácil ignorar o semáforo do que suas letras gigantescas: “Os Monólogos da Vagina”. A exuberância desaforada da peça publicitária preocupou Laércio que tinha que passar por aquele cruzamento todos os dias levando a bordo uma ardilosa criatura de apenas quatro anos de idade que atendia pelo nome de:
- Vitinho! Ele vai ler isso, Clara. É uma questão de tempo – profetizou Laércio à sua mulher quando viu o gigantesco cartaz ser instalado.
- Relaxe. O menino nem presta atenção nessas coisas.
- Ele vai ler, Clara. Olhe o tamanho das letras! Ele vai ler e vai querer saber o que é. Você já pensou?
- Você tá ficando neurótico.
- Eu disse para a sua mãe que era cedo demais para alfabetizar a criança. Mas ela ouve alguém?
- Você pode deixar a minha mãe fora das suas neuras?
O tempo foi passando, o outdoor foi ficando e Vitinho nem aí para a vagina em caixa alta que se exibia logo atrás do semáforo no qual paravam todo santo dia na volta da escola. Nunca pegaram o sinal aberto naquele cruzamento, porque reza a Legislação de Murphy que quanto mais você precisar de um semáforo verde, mais vermelho ele lhe aparecerá.
Como o inevitável pode ser até protelado, mas nunca (como o próprio nome diz) evitado, foi num belo final de tarde que Laércio e Clara ouviram um balbuciar vindo do banco de trás do carro:
- NÓ, LÔ, GOS, monolôgos, DA VA...
O carro saiu cantando pneus sob o sinal vermelho, arrancando o jovem leitor de seu texto e um grito de sua jovem mãe:
- VOCÊ PERDEU O JUÍZO?!!! Vai nos matar por causa de uma bobabem?
Laércio estava mais tenso que um carioca dirigindo de madrugada na Linha Amarela. O suor frio escorria em cascatas pelas têmporas, estava zureta a ponto de ignorar (o que é comum) sem querer (o que é raro) o chilique da mulher. Só conseguiu praguejar comentários para si mesmo tentando expurgar o que o deixava tão inconformado:
- Eu aprendi a ler aos seis anos. Porque ele não pôde esperar? Deveria ser proibido alfabetizar crianças pequenas. Elas não têm estrutura para receber tantas obscenidades. Até os seis anos as crianças deveriam só empurrar carrinhos e brincar com bonecas. Elas vão ter muito tempo depois para se entender com as letras...
A verborragia desvairada continuou por um bom tempo, o que fez Clara perceber que o caso era psiquiátrico-agressivo. A prudência falou mais alto que a raiva. Preferiu então se calar (o que era raro) a inflamar uma discussão maior (o que era comum).
Não se falou mais no assunto até o famigerado dia da grande liquidação de fronhas. Versa a supracitada lei de Murphy que, quando uma coisa está para dar errado, todas as condições adversas estarão tão fabulosamente presentes que não haverá - em todo o Universo conhecido – uma catástrofe, aberração ou buraco negro que a impeça ou a faça ocorrer de maneira pior. A batalha de Laércio contra a vagina de papel é a prova científica de que Murphy estava absolutamente certo sobre coisas que dão absolutamente errado.
- Laércio, vá ao shopping – mandou Clara no dia em que se cumpriria a profecia - Está acontecendo uma grande liquidação de fronhas brancas. Compre cinco pares. Não agüento mais dormir com aquelas bolinhas na cara. Vá logo e leve o Vitinho enquanto eu termino o jantar.
E assim eles foram. E assim voltaram:
Satisfeito por ter conseguido cinco pares de fronhas por apenas trinta e sete reais e quinze centavos, Laércio sequer reparou nos olhos do filho ao parar no semáforo. Mais esperto do que o pai, o menino desta vez apenas simulou com os lábios as últimas sílabas, em silêncio, e disparou de vez a pergunta fatal:
- Papai, o que é vagina?
Como nas horas de pânico o que governa a mente é o absurdo, a única coisa que passou pela cabeça de Laércio foi: “por que aquela velha que ensinou esse moleque a ler não está aqui?”
- E monólogo, filho? Você sabe o que é monólogo? – Laércio viu essas palavras saírem de sua boca completamente admirado com a própria agilidade de raciocínio.
- O que é vagina, papai? – Insistiu Vitinho revertendo o xeque-mate do pai.
- Como você quer saber o que é vagina se você ainda não sabe o que é monólogo?
- Você sabe o que é vagina, papai?
Foi nessa hora que um anjo apareceu em forma de canção de Sérgio Reis. O clássico sertanejo “Panela Velha” tocou no celular de Laércio, indicando que o chamado era de Clara:
- Onde vocês estão? Era só para comprar fronhas. O jantar vai esfriar - disparou a mulher do outro lado da linha.
- Estamos chegando! - Foi só o que o marido conseguiu responder.
Nesse momento percebeu que ainda estavam parados no semáforo, com o sinal verde já passando para o amarelo novamente. Laércio acelerou mudando de marcha e de assunto. Falou de bicicletas, de desenhos animados e de fronhas. E imaginou o estrago que uma alfabetização precoce pode fazer na cabeça de uma criança.
Depois daquela saia-justa, o assunto não voltou mais à baila. Foi somente quando estavam trocando as folhas do outdoor que Laércio, parado na mesma encruzilhada, relembrou o caso. Intrigado com o longo e conformado silêncio do filho, perguntou:
- E aí, filho? Não quer mais saber o que é monólogo?
- Não, papai. A minha amiga Daniela já mostrou o monólogo dela pra mim, lá na escola.
Moral: se não houver diálogo, o seu filho partirá para o monólogo.
- Vitinho! Ele vai ler isso, Clara. É uma questão de tempo – profetizou Laércio à sua mulher quando viu o gigantesco cartaz ser instalado.
- Relaxe. O menino nem presta atenção nessas coisas.
- Ele vai ler, Clara. Olhe o tamanho das letras! Ele vai ler e vai querer saber o que é. Você já pensou?
- Você tá ficando neurótico.
- Eu disse para a sua mãe que era cedo demais para alfabetizar a criança. Mas ela ouve alguém?
- Você pode deixar a minha mãe fora das suas neuras?
O tempo foi passando, o outdoor foi ficando e Vitinho nem aí para a vagina em caixa alta que se exibia logo atrás do semáforo no qual paravam todo santo dia na volta da escola. Nunca pegaram o sinal aberto naquele cruzamento, porque reza a Legislação de Murphy que quanto mais você precisar de um semáforo verde, mais vermelho ele lhe aparecerá.
Como o inevitável pode ser até protelado, mas nunca (como o próprio nome diz) evitado, foi num belo final de tarde que Laércio e Clara ouviram um balbuciar vindo do banco de trás do carro:
- NÓ, LÔ, GOS, monolôgos, DA VA...
O carro saiu cantando pneus sob o sinal vermelho, arrancando o jovem leitor de seu texto e um grito de sua jovem mãe:
- VOCÊ PERDEU O JUÍZO?!!! Vai nos matar por causa de uma bobabem?
Laércio estava mais tenso que um carioca dirigindo de madrugada na Linha Amarela. O suor frio escorria em cascatas pelas têmporas, estava zureta a ponto de ignorar (o que é comum) sem querer (o que é raro) o chilique da mulher. Só conseguiu praguejar comentários para si mesmo tentando expurgar o que o deixava tão inconformado:
- Eu aprendi a ler aos seis anos. Porque ele não pôde esperar? Deveria ser proibido alfabetizar crianças pequenas. Elas não têm estrutura para receber tantas obscenidades. Até os seis anos as crianças deveriam só empurrar carrinhos e brincar com bonecas. Elas vão ter muito tempo depois para se entender com as letras...
A verborragia desvairada continuou por um bom tempo, o que fez Clara perceber que o caso era psiquiátrico-agressivo. A prudência falou mais alto que a raiva. Preferiu então se calar (o que era raro) a inflamar uma discussão maior (o que era comum).
Não se falou mais no assunto até o famigerado dia da grande liquidação de fronhas. Versa a supracitada lei de Murphy que, quando uma coisa está para dar errado, todas as condições adversas estarão tão fabulosamente presentes que não haverá - em todo o Universo conhecido – uma catástrofe, aberração ou buraco negro que a impeça ou a faça ocorrer de maneira pior. A batalha de Laércio contra a vagina de papel é a prova científica de que Murphy estava absolutamente certo sobre coisas que dão absolutamente errado.
- Laércio, vá ao shopping – mandou Clara no dia em que se cumpriria a profecia - Está acontecendo uma grande liquidação de fronhas brancas. Compre cinco pares. Não agüento mais dormir com aquelas bolinhas na cara. Vá logo e leve o Vitinho enquanto eu termino o jantar.
E assim eles foram. E assim voltaram:
Satisfeito por ter conseguido cinco pares de fronhas por apenas trinta e sete reais e quinze centavos, Laércio sequer reparou nos olhos do filho ao parar no semáforo. Mais esperto do que o pai, o menino desta vez apenas simulou com os lábios as últimas sílabas, em silêncio, e disparou de vez a pergunta fatal:
- Papai, o que é vagina?
Como nas horas de pânico o que governa a mente é o absurdo, a única coisa que passou pela cabeça de Laércio foi: “por que aquela velha que ensinou esse moleque a ler não está aqui?”
- E monólogo, filho? Você sabe o que é monólogo? – Laércio viu essas palavras saírem de sua boca completamente admirado com a própria agilidade de raciocínio.
- O que é vagina, papai? – Insistiu Vitinho revertendo o xeque-mate do pai.
- Como você quer saber o que é vagina se você ainda não sabe o que é monólogo?
- Você sabe o que é vagina, papai?
Foi nessa hora que um anjo apareceu em forma de canção de Sérgio Reis. O clássico sertanejo “Panela Velha” tocou no celular de Laércio, indicando que o chamado era de Clara:
- Onde vocês estão? Era só para comprar fronhas. O jantar vai esfriar - disparou a mulher do outro lado da linha.
- Estamos chegando! - Foi só o que o marido conseguiu responder.
Nesse momento percebeu que ainda estavam parados no semáforo, com o sinal verde já passando para o amarelo novamente. Laércio acelerou mudando de marcha e de assunto. Falou de bicicletas, de desenhos animados e de fronhas. E imaginou o estrago que uma alfabetização precoce pode fazer na cabeça de uma criança.
Depois daquela saia-justa, o assunto não voltou mais à baila. Foi somente quando estavam trocando as folhas do outdoor que Laércio, parado na mesma encruzilhada, relembrou o caso. Intrigado com o longo e conformado silêncio do filho, perguntou:
- E aí, filho? Não quer mais saber o que é monólogo?
- Não, papai. A minha amiga Daniela já mostrou o monólogo dela pra mim, lá na escola.
Moral: se não houver diálogo, o seu filho partirá para o monólogo.
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