Para os que pensam que vivo somente de anedotas, eis uma crônica com toda a ironia que este país merece.
O vendedor de palavras
por Fábio Reynol
Ouviu dizer que o Brasil sofria de uma grave falta de palavras. Em um programa de TV, viu uma escritora lamentando que não se liam livros nesta terra, por isso as palavras estavam em falta na praça. O mal tinha até nome de batismo, como qualquer doença grande, "indigência lexical". Comerciante de tino que era, não perdeu tempo em ter uma idéia fantástica. Pegou dicionário, mesa e cartolina e saiu ao mercado cavar espaço entre os camelôs.
Entre uma banca de relógios e outra de lingerie instalou a sua: uma mesa, o dicionário e a cartolina na qual se lia: "Histriônico - apenas R$0,50!".
Demorou quase quatro horas para que o primeiro de mais de cinqüenta curiosos parasse e perguntasse.
- O que o senhor está vendendo?
- Palavras, meu senhor. A promoção do dia é histriônico a cinqüenta centavos como diz a placa.
- O senhor não pode vender palavras. Elas não são suas. Palavras são de todos.
- O senhor sabe o significado de histriônico?
- Não.
- Então o senhor não a tem. Não vendo algo que as pessoas já têm ou coisas de que elas não precisem.
- Mas eu posso pegar essa palavra de graça no dicionário.
- O senhor tem dicionário em casa?
- Não. Mas eu poderia muito bem ir à biblioteca pública e consultar um.
- O senhor estava indo à biblioteca?
- Não. Na verdade, eu estou a caminho do supermercado.
- Então veio ao lugar certo. O senhor está para comprar o feijão e a alface, pode muito bem levar para casa uma palavra por apenas cinqüenta centavos de real!
- Eu não vou usar essa palavra. Vou pagar para depois esquecê-la?
- Se o senhor não comer a alface, ela acaba apodrecendo na geladeira e terá de jogá-la fora e o feijão caruncha.
- O que pretende com isso? Vai ficar rico vendendo palavras?
- O senhor conhece Nélida Piñon?
- Não.
- É uma escritora. Esta manhã, ela disse na televisão que o País sofre com a falta de palavras, pois os livros são muito pouco lidos por aqui.
- E por que o senhor não vende livros?
- Justamente por isso. As pessoas não compram as palavras no atacado, portanto eu as vendo no varejo.
- E o que as pessoas vão fazer com as palavras? Palavras são palavras, não enchem barriga.
- A escritora também disse que cada palavra corresponde a um pensamento. Se temos poucas palavras, pensamos pouco. Se eu vender uma palavra por dia, trabalhando duzentos dias por ano, serão duzentos novos pensamentos cem por cento brasileiros. Isso sem contar os que furtam o meu produto. São como trombadinhas que saem correndo com os relógios do meu colega aqui do lado. Olhe aquela senhora com o carrinho de feira dobrando a esquina. Com aquela cara de dona-de-casa ninguém jamais desconfiaria. Passou por aqui sorrateira. Olhou minha placa e deu um sorrisinho maroto se mordendo de curiosidade. Mas nem parou para perguntar. Eu tenho certeza de que ela tem um dicionário em casa. Assim que chegar lá, vai abri-lo e me roubar a carga. Suponho que para cada pessoa que se dispõe a comprar uma palavra, pelo menos cinco a roubarão. Então eu provocarei mil pensamentos novos em um ano de trabalho.
- O senhor não acha muita pretensão? Pegar um...
- Jactância.
- Pegar um livro velho...
- Alfarrábio.
- O senhor me interrompe!
- Profaço.
- Está me enrolando, não é?
- Tergiversando.
- Quanta lenga-lenga...
- Ambages.
- Ambages?
- Pode ser também evasivas.
- Eu sou mesmo um banana para dar trela para gente como você!
- Pusilânime.
- O senhor é engraçadinho, não?
- Finalmente chegamos: histriônico!
- Adeus.
- Ei! Vai embora sem pagar?
- Tome seus cinqüenta centavos.
- São três reais e cinqüenta.
- Como é?
- Pelas minhas contas, são oito palavras novas que eu acabei de entregar para o senhor. Só histriônico estava na promoção, mas como o senhor se mostrou interessado, faço todas pelo mesmo preço.
- Mas oito palavras seriam quatro reais, certo?
- É que quem leva ambages ganha uma evasiva, entende?
- Tem troco para cinco?
11 setembro 2006
O vendedor de palavras
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9 comentários:
Fico muito contente em receber os comentários da seleção feminina de pseudônimos de Stela Domenica e Cia. Ilimitada.
É sempre uma honra ouvir tão notável time de escritoras.
Às preclaras moçoilas bjs do preescuro amigo.
Fabio
Fabio, parabéns pelo seu texto.
Tomei a liberdade de postá-lo em meu site.
Fábio, seu texto "O vendedor de palavras" é simplesmente uma obra-prima! Recebi por e-mail de um amigo e adorei.
Como escritora de livros para jovens, faço parte da AEILIJ (Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil). Coloquei seu texto em nossa lista de discussão, e estão todos simplesmente encantados.
Obrigada por ser tão talentoso!
Bjs,
Laura Bergallo.
Simplesmente tudo aquilo que eu queria passar para meu neto de 13 anos,sem me tornar um chato.
Meus parabens caro amigo!!
João Bartista Felisberto
joao52batista@bol.com.br
Seu texto é rechinantê.
Ao tocar nos rechegos da mente, e ascende em direção a luz que silente está a espreita. Faz mover e ecoa risos e provoca;
Desvitrificação de cada idéia que se areja .
Refresca e manifesta
O melhor.
Sinto desvaecer doce meu coração, que rompe em bocejos de doce gratidão.
Adorei!
Tanto tempo gasto com nada e em pouco com a qualidade recupera-se tudo.
Meus reconhecimentos totais.
Vivi /vividallosto@gmail.com 2008
Texto simplesmente fantástico!
Parabéns pelas ótimas palavras.
Abs, Eduardo Favaretto
Cara, eu já tinha lido isto em algum lugar. Acho que me enviaram. Genial! {D.}
é realmente uma leitura muito agradavel.
adorei rsrsrsrsr simplesmente inteligente e engraçado
tô devorando seu blogg
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