Esse foi o primeiro alerta que soou me dizendo que eu estava
só. Em dez anos de casamento, o xampu jamais havia acabado. Nesse tempo todo,
eu nunca precisei comprar uma gota de xampu. Agora, separado, estava eu lá,
olhando abestalhado para a estante do banheiro e me perguntando “e agora?”
Era parte do casamento uma divisão harmoniosa de tarefas.
Ela cuidava dos itens de toalete, eu ficava com as coisas da garagem. A
cozinha, nós dividíamos. Eu comprava os artigos alimentícios de primeira necessidade:
Danete, Nutella, biscoitos, queijo, cerveja, refrigerante... Ela se responsabilizava
pelos supérfluos do dia a dia: arroz, feijão, legumes, a carne do almoço... De
um dia para o outro, estes últimos ficaram órfãos.
O xampu também. Admiti, enfim, que a única pessoa que
poderia compra-lo agora estava me olhando com cara de idiota no espelho. Foi aí
que me atormentou uma segunda questão: que xampu comprar? “Dãhhh, compre o
mesmo que acabou!”, diria você. Quisera eu fosse fácil desse jeito. O xampu era
daquela empresa que não gosta de homens, a Natura. Homens precisam entrar na
loja, pegar o produto, passar no caixa e ir embora. Simples assim. Mas a Natura
tem como missão acabar com a objetividade masculina. Ela não tem loja! Eu estava
numa cidade nova e teria de caçar uma “representante Natura”, folhear um
catálogo com milhões de batons, sombras e cremes para encontrar um simples frasco
de xampu e depois esperar um mês para o bendito chegar.
Quando fomos morar juntos, umas das primeiras perguntas que ela
me fez foi: “que tipo de xampu você usa?” “Que tipo de pergunta é essa? Eu uso
qualquer xampu, ora!” “Você não pode usar qualquer xampu, o seu cabelo é
oleoso!” Caramba, acabava de me juntar à pessoa e ela sabia mais do que se
passava na minha cabeça do que eu mesmo. Em pouco tempo, ela dobrou os itens de
toalete que eu usava e quintuplicou meus perfumes. “Você precisa de um sabonete
facial. É bom passar um condicionador de vez em quando...”. Eu não me atrevia a
questionar, afinal ela transitava com tranquilidade naquele mundo misterioso e
complexo em que só mulheres e metrossexuais habitam, o universo dos cosméticos.
Um mês depois do fim do casamento, ela passou em casa e eu quis mostrar
orgulhoso o xampu que eu tinha comprado sozinho na Mahogany, loja bacana, pra não ter perigo de levar uma porcaria.
“Fábio, o tipo de xampu está certo, mas eu havia lhe falado que os translúcidos
são melhores. Esse é opaco!” Verdade. Ela havia defendido por várias vezes a
superioridade dos xampus translúcidos, mas eu não havia me lembrado. Comprara um
xampu opaco! Mas foi uma semivitória! Antes de conhecê-la eu passaria Omo
líquido nos cabelos e nem notaria a diferença. Evoluí de ogro a lorde.
Quando estávamos juntos, sempre dizia a ela que a razão de
eu ter me casado era a minha dificuldade de juntar os potes Tupperware às suas
respectivas tampas. Quando a união terminou, percebi que aquela brincadeira era
uma verdade maior do que eu imaginava. Uns trinta potinhos de formatos e
tamanhos parecidos e suas tampas coloridinhas espalhadas pelo armário fazem a
tarefa de guardar os restos do jantar uma missão longa e tediosa. Os marmanjos
que não valorizam a vida a dois, com certeza, não usam Tupperware.
É esquisito ver, de repente, passar uma semana inteira sem
levar nenhuma bronca. A máquina de café tem uma bandeja ajustável. Para tirar
um espresso, às vezes, eu segurava a xícara no ar, mania que peguei da máquina
do trabalho que tinha bandeja defeituosa. Nessas horas, era inevitável: “Fábio,
acerte a bandeja e coloque a xícara nela!” É difícil dizer como é estranho tirar
café “aéreo” no meio do mais absoluto silêncio. Nos primeiros dias, eu até
olhava para trás cobrando uma censura de alguém que não está lá. Mais bizarro
ainda é quebrar um copo sem levar um escalda-rabo instantâneo. A primeira vez
que isso aconteceu, fiquei até triste. “Hei, quebrei um copo! Ninguém se
importa com isso?”
Não é mole se desapegar das banalidades cotidianas que
encheram os meus últimos dez anos. Muitas vezes saía de casa deixando alguém
ainda dormindo. Era minha rotina dar uma bicotinha numa bochecha morna que
ainda ressonava. Recebia de volta um sorriso vindo do meio do sonho. Era o
nosso “bom dia”.
Também não sei o que fazer com mil coisas do universo
feminino que sobraram por aqui. Mudei de apartamento e a diarista me perguntou
o que era para ser feito com os vasinhos de plantas artificiais, as velas
coloridas aromáticas, os enfeitinhos de prateleira... “Sei lá”, respondi, “acho
que o departamento de decorações desta casa foi desativado”.
Me acostumei a assistir TV sempre com companhia, mesmo
quando a companhia dormia no sofá na maior parte das vezes. A noite terminava
com um trabalho danado de levar a pessoa para a cama, mas de repente ficou
muito mais difícil assistir TV sem aquela presença morninha ao meu lado.
A despeito desse vácuo repentino de companhia, permaneço
sereno e sei que ela encontrará em breve um cara de cabelos oleosos que
precisará dos prodígios dos xampus translúcidos e de um sorriso dorminhoco de
bom dia. De meu lado, sigo com a esperança de um dia encontrar a tampa do meu
Tupperware. Enquanto ela não chega, vou me virando com esse líquido opaco da
Mahogany.