26 agosto 2008

As pessoas e as coisas

Um colega de trabalho queria comprar um celular sofisticado e que não existia no país. Pensou em encomendar de uma importadora, mas era extremamente caro. Sugeri que pedisse a algum viajante ou que esperasse o aparelho ser vendido por aqui. Quando foi anunciada a venda no Brasil, por um valor bem em conta, fui informá-lo. “Não quero mais. Agora todos vão poder ter um!” foi a sua resposta. O afã acabou porque ele não estava nem um pouco interessado em adquirir um aparelho telefônico móvel com dezenas de recursos ultramodernos. O que ele pretendia comprar era um fetiche, uma fonte de status, um objeto que o fizesse ser admirado e até invejado por outros, algo que lhe dissesse ao ego que ele era diferente e superior, de certa forma, a todos os demais que não possuíam aquilo. Nesse sentido, o celular poderia ser substituído por um par de tênis de novecentos reais, uma caneta tinteiro de mil euros ou um relógio de cinco mil dólares que... mostra as horas!

Essa atitude de consumo pertence a uma multidão que vai às lojas semanalmente tentar tapar buracos interiores com as últimas novidades do mercado. O fetichismo cresce pari passu com o aumento do número de quinquilharias à disposição nas vitrines. Em tudo o que compramos existe algo que a publicidade não conta e que não vem discriminado na nota fiscal, é por que compramos. Por trás de cada produto adquirido ou serviço contratado há um motivo único e pessoal que ultrapassa a finalidade prática daquilo. Uma calça é muito mais que uma calça se ela vier com uma etiqueta vistosa de uma marca famosa. A qualidade do produto em si fica para um segundo ou terceiro plano. Quer fazer um teste? Você compraria uma calça de grife e retiraria a etiqueta externa? Afinal, a calça é a mesma, a qualidade, idem, mas o fetiche estaria desfeito.

A distorção do consumismo, poucos percebem. Só usamos a calça jeans de dois mil reais para mostrar aos demais passantes que temos poder para ostentar aquela etiqueta na nádega. A publicidade prega que a marca lhe empresta o prestígio global da empresa. Porém, o que ocorre é o oposto. A corporação usa gratuitamente o seu espaço glúteo-publicitário, e até o seu prestígio que você não acredita possuir, para vender um peixe que não é seu. O pior, você pagou caro para disponibilizar a sua bunda-propaganda. Muito mais do que o “excelente corte” e o “maravilhoso tecido” que você usa como argumentos para justificar a compra, você está atrás é do valor que a marca comercial poderia agregar à sua imagem.


E por que nos sentimos “mais” se estamos com um tênis “X” ou com a camisa da grife “Y”? A resposta é simples: porque não conhecemos o nosso próprio valor. O mercado nos ensina que competência é dirigir um conversível, respeito é o que se tem ao vestir etiquetas famosas e admiração é o que você recebe ao ver as horas num mostrador de platina e diamantes. Sem essas coisinhas fundamentais, você é apenas uma pessoa como outra qualquer, mesmo que não exista no mundo inteiro uma pessoa igual a outra qualquer.

Preferimos acreditar que compramos sempre aquilo de que precisamos, mas isso não é verdade na maior parte das nossas expedições aos shoppings centers. Por trás de muitas bolsas novas estão relacionamentos mal resolvidos, por trás de carrões caros e potentes estão inseguranças inconfessáveis, por trás de trajes vistosos estão frustrações recalcadas e quantas inutilidades eletrônicas servem de catarse para dores que não queremos enfrentar?


Você não consegue se livrar disso? Pelo menos olhe para o último supérfluo que você adquiriu e reconheça o que realmente quis comprar. Com o tempo, você vai aprender a dar o devido valor a cada coisa e a distinguir poder aquisitivo de caráter. Se tiver perseverança, vai encontrar tesouros reais e, se tiver sabedoria, não os perderá. Se esse dia chegar, um celular será apenas um celular, mas você será muito mais do que apenas uma pessoa.

12 agosto 2008

Arrumando as malas

Ficou sabendo de chofre que iria logo morrer. O médico não fez cerimônia, lhe deu três meses, quatro no máximo, de uma existência quase normal até que o anjo da morte lhe desse um beijo de língua, “que nojo!” exclamou ao imaginar a cena. No princípio, ficou cabisbaixo, revoltou-se, voltou a ficar sorumbático, irritou-se novamente e, por fim, conformou-se. Afinal, ele iria de qualquer jeito, mesmo. Ele só não esperava partir com hora marcada, mas já que seria assim, que assim fosse. Realmente era uma pena, tinha só 52 anos, mas lamentar-se e reclamar aos céus só iria dar um fim triste a uma vida que não tinha sido assim tão ruim. O jeito era arrumar as malas.
Olhou para os objetos de sua casa e pensou o que seria daquilo tudo que juntou ao longo de seu meio século de vida. Mulher, já não tinha mais. Os filhos moravam longe e não dariam tanto por sua falta. Talvez no Natal ou no Dia dos Pais, mas superariam bem. Pensou nos únicos seres vivos que ainda dependiam dele no mundo, duas samambaias, três violetas e uma espada-de-são-jorge. As daria todas à vizinha do apartamento em frente. Olhou para a sua enorme coleção de livros, lembrou de quando comprou ou ganhou cada um deles e jamais havia imaginado que um dia ele mesmo teria de dar um destino a tudo aquilo. Doou-os todos. Olhou para a mobília, a TV, o aparelho de som, o computador, o que faria com tudo aquilo? Uma feira de garagem! Vendeu tudo, até a cama e o colchão em que dormia. Afinal, dormir no chão por quatro meses não iria matá-lo, e mesmo o que iria matá-lo não fazia mais parte de suas preocupações.

Olhou para o apartamento vazio e viu que ainda tinha muito. Abriu uma conta conjunta com o seu filho mais velho. Tirou todo o dinheiro que tinha em sua própria conta bancária e a encerrou. A nova conta o sustentaria pelos próximos quatro meses e o que sobrasse, o filho daria cabo. Pôs à venda o próprio apartamento, impôs como única condição que desocuparia o imóvel depois de seis meses. Encontrou um comprador interessado que lhe adiantou metade do dinheiro, passou esse valor à moça da faxina do condomínio, para que terminasse de construir sua casa. A moça chorou quase sem acreditar no que estava acontecendo. A metade final do pagamento, dizia o contrato, deveria ser dividida em partes iguais e paga diretamente aos filhos.

Olhou para o seu amado carrinho, que por tanto tempo o acompanhou. O pequeno bólido foi reformado, pintado, recondicionado, todo forrado em couro e minuciosamente lavado e cuidado. O que faria com ele? Encontrou um colecionador metódico que cuidaria dele e por um bom preço o vendeu. Doou o valor a um asilo, para que acalentasse os que não tiveram a mesma sorte de poder morrer na melhor fase da vida.

Estava, enfim, sem amarras nem apegos. Completamente livre e preparado para o seu destino e, como nunca antes em toda a sua vida, estava imensamente feliz. Ficou imaginando por que só agora ele havia descoberto a verdadeira felicidade. “Tanto tempo perdido!”, pensou. Mas o prazo para a morte chegar passou e ela não veio. Resolveu então voltar ao médico para saber se ainda haveria um ou dois meses de prorrogação de seu restinho de vida. Qual não foi sua surpresa quando o médico voltou com seus exames e disse que a doença mortal simplesmente desaparecera de seu corpo. Ficou esfuziante, completamente feliz, tinha encontrado enfim, o sentido da vida e, com mais anos à disposição, poderia falar disso ao mundo e fazer as pessoas felizes. O mundo seria outro quando descobrisse a alegria que ele sentiu. Saiu do consultório em disparada, olhou para a sua vida toda que passava diante de seus olhos, mas não olhou para os lados ao atravessar a rua. Foi atropelado por um caminhão sem freio que descia em disparada. Morreu na hora. O motorista do caminhão estava sóbrio, mas o mecânico que reparou os freios, não.