11 agosto 2016

Zé Anhaia

José Anhaia é um menino maluco, daqueles que aparecem no deserto pedindo o desenho de um carneiro. Quando o conheci eu estava num momento bem difícil, sem emprego, com esperança minguando, vida esmaecendo ficando cinza, cinza...

Havia conseguido uma bolsa na Unicamp, mesmo lugar onde seo José trabalhava como motorista a poucos anos de se aposentar. Andava como se a vida fosse um eterno domingo, sempre contando piadas e inventando trocadilhos. Dizia que o segredo de seu otimismo era abrir a janela de manhã “para deixar o ar lindo entrar” e que só o governo deixava o seu “P.I. reduzido”.

Erudito, começou a aprender inglês sozinho, depois que encontrou um livro didático esquecido dentro do ônibus que dirigia. O estudo o deixou fluente na conversação. Era ele quem atendia ligações internacionais com desenvoltura impressionante. “Motorista tem muito tempo livre e eu uso para ler e estudar”, contava.

E como lia! Devorava livros com apetite formidável. Contagiou colegas mais escolados incentivando-os a conhecer Rosamunde Pilcher e Gabriel Garcia Márquez. Achava graça nas palavras e as anotava para colocar na roda de discussão do almoço. “Vocês sabem o que é misógino? É um xingamento bem chique, não é? Imagine você disparar para o sujeito ‘seu misógeno’! É muito elegante, não?” Adorava uma boa expressão e um bom título de livro. “Conhece ‘Teresa Batista Cansada de Guerra’? É de Jorge Amado, belo título!”

A hora do almoço era o fórum preferido para ele desenvolver suas minuciosas elucubrações. Fazia questão de trazer questões fundamentais sobre a vida, o universo e tudo mais. Apresentei a ele o Guia do Mochileiro das Galáxias e o depressivo Marvin o cativou. “Como pode um robô com depressão?”, debochava do personagem que virou protagonista de suas piadas.

Mesmo com a intelectualidade invejável, o que mais chamava a atenção nele era a atitude diante da vida. Deixado com um filho especial, José Anhaia o criava sozinho, com a dificuldade de morar longe e cruzar a cidade para poder trabalhar. Com todos os revezes que a vida lhe apresentou, ele jamais aposentou o bom humor e a irreverência. Gostava de plantar bananeira e andar de cabeça para baixo pelos corredores vazios da Unicamp. Um dia, o chefe o encontrou assim. “O que é isso seo José?” voltando sobre as pernas, respondeu sem se abalar, “Estava com dor de cabeça, professor, andar de ponta-cabeça ajuda a passar”, dissimulou.

O fato é que o mundo é muito certinho para ser visto de cabeça para cima. Grandes mentes precisam subverter pontos de vista para que ideias fluam, pensamentos sejam oxigenados e as cabeças não fiquem confinadas sobre pescoços. Talvez por isso elas latejem.

Esse moleque sexagenário trazia doses homeopáticas de cor para minha vida cinza. Foi pingando seu guache em trocadilhos inteligentes e uma visão absurdamente positiva de tudo. Com sutileza e ironia trazia momentos diários de alegria seguida de sua gargalhada redentora.

Ontem recebi um e-mail dizendo que o coração de Zé Anhaia parou. Não entendi. Nunca entenderei. O menino que surgiu no deserto desapareceu assim, sem dizer tchau. Jamais vou perdoá-lo por sair desse modo. Há cinco anos liguei para ele num dia de Natal e ganhei dele boas risadas. Não admito que nunca mais vou poder repetir isso.

Aprendi com ele que desenhar carneiros pode não nos tirar do deserto, mas torna a jornada mais leve e a vida mais fresca. Vou tentar virar o coração de ponta-cabeça. Deve ajudar a doer menos...