30 setembro 2008

O porco do Cansado

No meio da rua passeava um porco. Caminhava pachorramente com seu olhar suíno semicerrado arfando o focinho redondo sempre a farejar comida e podridão vinda dos lixos das casas. A vizinhança o sustentava porque seu dono, Cansado, não queria saber de cuidar do porco nem de seus cinco cães e dois gansos. Toda a fauna de Cansado era mantida pelos vizinhos que se apiedavam dos bichinhos que viviam soltos a pedir comida e só voltavam para casa à noite para dormir e trocar pulgas com o dono. A esta altura da história não precisarei explicar a origem da alcunha do Cansado, só esclarecerei que o apelido lhe caiu tão bem que ninguém mais da rua lembrava do nome de batismo do capiau.

Pois voltemos ao porco. Estava ele a caminhar pela rua e arfar o focinho sem, contudo, abanar o pequeno rabo espiralado. Não sei do conhecimento de anatomia suína do leitor, mas talvez seja adequado esclarecer que, devido ao formado da cauda ou quiçá à ausência de musculatura específica para tal fim, os porcos não costumam contar com uma grande coordenação rabial. Por isso, o rabo balança apenas com o chachoalhar do lombo ao qual se prende sem nenhuma interferência voluntária do animal. Feita a explanação biológico cultural, o fato é que o porco, ao contrário dos outros animais do Cansado, despertava não somente a piedade dos vizinhos, como também a gula de um deles.

Pança, que também tinha outro nome de batismo esquecido pelo tempo, começou a lançar olhos para o porco. Foi quando o bicho começou a crescer e a engordar com os cuidados do povo. De leitão magro de cofrinho de quermesse, o dito criou bochechas e dobrinhas tornando-se um belo e rechonchudo porco, digno de entupir as artérias do mais glutão americano comedor de bacon. Há semanas, Pança só enxergava um lombo com farofa passar em frente de sua varanda todo fim de tarde. Aquilo era tentação demais para quem não tinha nem para o colchão-duro do açougue da esquina.


Um belo dia, o gordo Pança decidiu atrair o belo e gordo porco. Pegou os melhores restos de comida do almoço colocou-os numa lata e a esquentou para que cheirasse por todo o quarteirão. Em pouco tempo, uma silhueta suína apontou no horizonte, no começo da rua, e aproximou-se saltitante, sem perder, porém, a pachorra indispensável à peculiar porquice. Bem em frente à casa do Pança, o focinho arfou frenético, parou o porco que vinha bem atrás dele e o direcionou ao portão do Pança, que estava aberto. O larápio levou o porco para os fundos da casa. E ninguém mais soube do porco do Cansado. Daquela noite em diante, a vizinhança ouviria uma gritaria infernal entre o Pança e a sua mulher. Ninguém entendia por inteiro as frases do arranca-rabo, mas entre um palavrão e outro eram nítidas as palavras "porco" e "cansado".

Por fim, numa madrugada sem lua nem estrelas, um grito estridente, rápido e contorcido foi ouvido da casa do Pança. Ninguém foi ver o que era. Alguns fizeram uma prece de despedida e até choraram pelo porco do Cansado. Naquela noite não houve gritaria. Na manhã seguinte, a mulher do Pança passou de porta em porta avisando que haveria feijoada no almoço, que todos estavam convidados e que não, ela não precisava de ajuda, faria tudo sozinha na cozinha, mas que não faltasse nenhum vizinho porque a comida era muita.

E lá estavam todos. Sentados em uma longa mesa no meio da rua, os vizinhos se acomodaram fitando a mulher do Pança com olhares acusadores, mas sem falar nada para não perder aquela refeição de aroma inebriante que já invadia todas as casas. Nada menos do que cinco panelões cheios foram enfileirados na mureta da casa do Pança. Quando todos se sentaram, uma criança foi a única que notou uma ausência na mesa e perguntou à cozinheira: "onde está o Pança?" A mulher virou a cabeça como se olhasse para a própria casa: "ele se foi! Estou comemorando a minha separação!" respondeu a mulher com descaso. E ninguém mais no bairro soube do homem.

No mesmo dia à tarde, alguns vizinhos foram à casa do Cansado motivados pela estranheza de ele não ter ido reclamar do assassinato de seu porco e nem ao menos reivindicar seus restos mortais na feijoada. A porta, como sempre, estava aberta. Bateram nela. Ninguém apareceu. Entraram e o cheiro de fezes de animais quase os derrubou. Encontraram no quarto um esqueleto em cima da cama. Estava perfeitamente limpo e com várias marcas de dentes que pareciam ser de um porco. "Enfim, descansou!" foi só o que um deles disse.

Dias depois da inesquecível feijoada de despedida do Pança e da descoberta arqueológica na casa do Cansado, um berro foi ouvido na casa que patrocinara o regabofe. A ex-mulher do Pança havia saído para o trabalho, de modo que a casa deveria estar supostamente vazia, e os gritos, supostamente extintos. Os vizinhos mais intrépidos encostaram o ouvido na porta da casa do Pança e bateram: "tem alguém aí?" Como resposta, ouviram um nítido e indefectível "óinc!".

25 setembro 2008

O Saci

Como bom brasileiro, o Diário da Tribo vai dar uma força à cultura popular e resgatar as raízes tubérculo-macachêiricas do nosso folclore. A Enciclopédia Diatríbica Brasileira, ou em bom português: Tribopedia (lê-se tribopídia, para os que não sabem ler bom português), traz em seu primeiro fascículo um velho desconhecido dos tupiniquins, o saci.

Saci (Pernetus pulantis)
Originário das florestas supra-tropicais e meso-equatoriais de altitude mediana do Brasil, o saci é uma criatura afrodescendente enquadrada como portadora de necessidades especiais por lhe faltar um dos membros inferiores – geralmente uma das pernas.

A espécie se caracteriza por uma carapuça rubro-sangue da cor vermelha viva puxando para o escarlate. O saci é tabaco adicto consumidor de grandes quantidades de nicotina e de outras ervas maneiras que auxiliam na descontração e no desanuviamento das idéias sacízicas. Como entidade folclórica espada, ele jamais enrola (ou leva) fumo, prefere socá-lo no pequeno orifício de um cachimbo que não sai de sua boca nem durante o exame de próstata.

Até meados do século XX, suas comunidades viviam de atividades assombrativas rurais quando passaram a receber direitos pelo uso de imagem nos livros de Monteiro Lobato. Com a adaptação dessas obras para a TV, alguns sacis entraram para a folha de pagamento da Rede Globo como figurantes ou intérpretes de si mesmos. Conhecida como época áurea do sacizado, o fim da década de 1960 colocou os “coisa-cuisins” globais nas baladas no Leblon e em bundalelês nos apês de Walter Clark, acompanhados por Dona Benta, Sinhá Anastácia e Tio Barnabé.

Com o encruamento da ditadura militar, os sacis entraram para a lista de perseguidos por comunismo do SNI, especialmente por causa da cor de sua carapuça. Muitos foram torturados e obrigados a ficar de três sobre tampinhas de Grapete. Outros foram extraditados para a Europa onde lecionaram na escola de Magia e Bruxaria de Hogwartz, na periferia de Londres, e acabaram servindo de inspiração para outro extraditado folclórico compor a canção London, London.

De volta ao Brasil, após a anistia, os sacis jamais conseguiram se recolocar. A Rede Globo já era dominada pelas mulas-sem-cabeça que narravam jogos de futebol, corridas de Fórmula 1 e apresentavam programas dominicais de auditório com meninas de biquíni equipadas com peitos balançantes. Para piorar, as novas leis anti-fumo, que proíbem a tragada em locais públicos e privados, igrejas, casas de tolerância e de burlesco, áreas de proteção ambiental e regiões tombadas pelo patrimônio histórico e arquitetônico, deixaram aos sacis pouquíssimos habitats disponíveis para a sua procriação. Refugiados em comunidades quilombolas, esses encarapuçados sobrevivem hoje com o auxílio bolsa-família-perneta. Os que se abrigaram nas periferias dos grandes centros vivem de pequenos furtos e de uma vergonhosa aposentadoria por invalidez.

15 setembro 2008

O banco que é a cara (do trânsito) de São Paulo

Não tenho nada contra os bancos. Na verdade, eles rendem excelentes crônicas. Principalmente quando não atendem a gente. Pena que eles não gostem tanto assim de mim. Não é nada pessoal. Creio que eles até me amem, porque são os que mais escrevem cartas pra mim. O que eles não suportam é a quantidade de dinheiro que eu deixo neles. Acho que isso os irrita tanto que os únicos "seres" que costumam me atender é a internet ou a voz eletrônica do telefone. Via de regra, não há uma vivalma para falar comigo.

Esta crônica é fresquinha. Nasceu hoje à tarde na fila do banco. Eu tinha muitos outros serviços para fazer, sim senhor. Graças à Nossa Caixa, eles acumularam para amanhã e vocês ganharam isto:

(Fábio Reynol - De uma agência da Nossa Caixa) - Acabo de completar meia hora de espera no banco Nossa Caixa. Estou na fila do atendimento tentando encerrar a minha conta corrente. Se eu não fizer isso agora, corro o risco de entrar para o rol de devedores que não pagaram tarifas as quais eles nem sonhavam que existiam. Este mês, por exemplo, perdi vinte reais a título de "recadastramento". Culpa minha. Esqueci de fechar a conta a tempo.

Por falar em tempo, agora já são 40 minutos de cadeira. O suficiente para eu digitar este texto no teclado minúsculo do celular. A demora seria por falta de atendentes? Não creio. No momento há apenas uma mesa ocupada com um cliente, porém, existem outros cinco funcionários para “atender”. A atendente que está à minha frente sentou em sua cadeira há 20 minutos, passou dez organizando uma papelada, dois atendendo o próximo cliente da fila, mais dois rabiscando papéis e até agora está falando ao telefone.

Ao lado dela trabalha um rapaz. Quando eu cheguei, ele estava com uma cliente, mas a mulher saíra de sua mesa há 20 minutos. Ele foi então à impressora, do lado oposto da agência, olhou a pilha de senhas e voltou para a sua mesa onde rabiscou três folhas de papel, passou mais cinco minutos digitando algo no computador e sacou o telefone. Juntou-se à sua colega e ficou ligando para clientes. Por sinal, a maioria dos destinatários não estava. “Posso ligar em outro horário?” “Será que ele pode me retornar?” “O senhor não sabe se ela se interessaria em...” foram algumas das conversas que eu consegui ouvir. Parece que os clientes que não se dirigiram ao banco não estavam querendo ser atendidos. Enquanto eu e mais três panacas que estavam precisando do serviço éramos magnificamente ignorados pelo setor.

Além desses, havia uma terceira atendente que conversava com uma senhora quando eu cheguei. Quando a cliente foi embora, a funcionária se perdeu no fundo da agência. Voltou há cinco minutos, sentou um pouquinho, rabiscou também alguns papéis (deve haver algum bônus oferecido pelo banco por isso) e, como num milagre, chamou a próxima senha, ainda bem longe da minha.

Porém, entre os funcionários do atendimento, a que mais me tem chamado a atenção é uma quarta mocinha que, durante esses 45 minutos em que eu estou aqui, está... atendendo! Tudo bem que ela está com o mesmo cliente durante todo esse tempo, mas mesmo assim é reconfortante ver um trabalhador fazendo o seu trabalho. É como ver um padeiro fazendo pão e a polícia prendendo bandidos. Coisas raras no Brasil. Se entre cada quatro brasileiros, um fizesse digna e honestamente o seu trabalho, estaríamos com a cadeira do Canadá no G8. Mas não posso dizer se a moça era realmente esforçada ou se o caso era difícil demais para ela dispensar o cliente e se juntar ao atendimento telefônico - modalidade muito mais tranqüila do que olhar para as caras feias dos clientes da agência.

Desde que cheguei só ouvi chamarem a primeira senha após 15 minutos de cadeira. O pior: cantaram o número “336”; o meu era o “444”! Se eles demorassem quinze minutos para chamar cada cliente eu seria atendido em duas horas! A coitada que esperava ao meu lado me acalmou: “a maioria já desistiu e foi embora!”, avisou-me aliviada. Ufa! Sorte minha que os bancos de hoje são somente para os heróis da resistência ou para os caras-de-pau que ficam digitando crônicas no celular.

Opa! Acabaram de chamar a minha senha, 50 minutos cravados!

“Eu gostaria de encerrar a minha conta, por favor.”

“Mas por que o senhor quer fazer uma coisa dessas???”

“Posso responder por escrito?”