13 junho 2008

As celebrações da vida

Ontem, pleno Dia dos Namorados, parei atrás de um senhor na fila de frios do supermercado. Pediu salsichas. “Não. Coloque menos, por favor”, disse à pessoa que o atendia e virou-se para mim: “Só a minha mulher comia salsichas comigo. Ela morreu há dois anos depois de vivermos 51 anos juntos. Minha filha que mora comigo prefere não jantar. Faz dois anos que não tenho companhia para comer salsichas.”

O que eu poderia dizer? 51 anos é mais do que eu já vivi. Por um instante me imaginei partilhando a vida e salsichas com alguém por mais de meio século, mas o homem voltou a desabafar comigo: “Não tem nenhum dia em que eu não pense nela. É duro, viu? Não é só a salsicha, ela fazia uns doces maravilhosos. A menina que trabalha lá em casa também faz, mas não é a mesma coisa.”

Não, não é. Ele sabe que não são doces nem salsichas que lhe fazem falta, mas a pessoa a quem essas coisas remetem, alguém com quem partilhou 51 anos de caminhada e que não voltará. Mesmo assim, ele precisa jantar salsichas e comer doces para celebrar os momentos que ele teve e que atestam que ele viveu.

Todos nós precisamos de celebrações próprias para marcar alegrias e tristezas, celebrações de chegadas e de adeus. O problema é que não temos esse costume. A internet, o telefone, o shopping center acabam se tornando os altares para expurgar nossas dores. Não temos uma celebração para o fim de um namoro, para um divórcio, para a perda de um emprego nem para os pais que sofrem um aborto, por exemplo.

Quando sofri o fim de um lindo namoro, minha amiga Beth percebeu o tamanho da minha dor e se ofereceu para, no Dia dos Namorados, fazer sua especialidade na minha casa, uma lasanha com manjericão. Com a minha mãe, compramos juntos os ingredientes e cozinhamos aquele prato. Em volta de uma bonita mesa, comemos e bebemos. Sempre debochada, Beth tirou sarro da minha situação, fez piada da vida e nos empanturrou com uma maravilhosa massa. Ela foi a sacerdotisa daquela celebração que marcou o fim de uma bela parte da minha vida. Revigorado, recobrei esperanças, realimentei sonhos, continuei a vida e vivi histórias ainda mais belas do que aquela que havia deixado para trás.

A partilha do pão com os amigos é a nossa maneira de agradecer aos céus por tudo de bom que vivemos, tudo de belo que somos e tudo de importante que perdemos e tivemos de deixar para trás. Levantar uma taça de vinho serve também para encerrar algo maravilhoso que vivemos e já não temos, não para lamentar, mas para transformá-los em tinta a fim de escrever capítulos ainda melhores que os passados, mesmo que nunca iguais. Nossos banquetes de despedida devem celebrar a vida e dizem mais a nós mesmos do que a qualquer outra pessoa. Por isso, o prato principal pode ser caviar, pizza, lasanha ou salsicha.

10 junho 2008

A assombração de J. Anhaia

Uma bela noite, o senhor José Divino vestiu um belo pijama de uma bela seda bege pontilhada com bolotas azuis não tão belas. O traje de gosto duvidoso não vem ao caso e não tem nada a ver com a trama dessa história. Voltando àquela bela noite, após vestir o sedoso pijama bege-anis-embolotado, seo J. (abrevie-mo-lo) apagou a luz como fazia todas as noites, ou pelo menos, daquela vez, tentou fazê-lo. Ao cutucar o interruptor com a ponta do indicador direito percebeu que a luz se foi, como devia ser. O bizarro ocorreu quando sua buzanfa sedosa encostou na colcha de matelassê da cama. Naquele exato momento, a lâmpada começou a piscar em diversas intensidades luminosas, do modo mais assustador que uma lâmpada eletrônica de sua categoria consegue ser.

Na mesma hora, seo Jota fez o que qualquer pessoa faria naquela mesma situação: tentou um contato telepático com a lâmpada. “Dizei o que quereis!” perguntou à ditacuja. Estava meio envergonhado, pois há muito não conjugava nada na segunda pessoa do plural. Acabou se sentindo orgulhoso por ainda lembrar como se fazia isso. Sabia que um dia na vida usaria aquela forma verbal que a maioria dos colegas achava inútil. Ele, porém, o mais esperto da turma, sabia que aquela era a conjugação adequada para se falar com Deus e com o Além. Como o Todo Poderoso não tinha muito tempo para prosear com ele, precisou desse contato sobrenatural para seo J. desenferrujar o verbo. Sem obter resposta, repetiu: “Dizei o que quereis!”. A lâmpada respondeu como toda lâmpada de fino trato responderia, com o mais absoluto silêncio. O leitor há de convir que eu não me daria ao trabalho de escrever essa história se ela terminasse por aqui. De fato, não termina.

O caso é que, na noite seguinte, um pouco menos bela do que a sua antecessora, a rotina de cutucar, deitar e piscar se repetiu. Mais uma vez, seo J. tentou conversar telepaticamente com a lâmpada, porém, agora de um modo mais eloqüente: “Dizei o que quereis, oh lâmpada!” O “oh lâmpada” era outro resquício dos tempos de grupo escolar. Até se lembrava do nome daquilo, “vocativo”. Jamais esquecera a sua mestra nas primeiras letras, dona Elzinha, dizendo que o pomposo “oh” era coisa de linguajar chique e sempre indicava o tal vocativo. Mirando a lâmpada, sentiu-se imensamente feliz por ainda estar afiadíssimo no português a despeito das décadas que passou longe dos bancos escolares. Foi bem quando ele estava nesse êxtase lingüístico, sintática e semanticamente relaxado que a lâmpada, que dessa vez deve ter percebido que era mesmo com ela, resolveu responder. “A tua alma!”, disparou a marota enquanto ainda piscava quase estourando os cátodos de tanto rir.

Seo José quase teve uma parada cardíaca. Com o coração disparado, fitava o teto piscante esperando ver a qualquer momento o anjo da morte. A essa altura, a lâmpada já sentindo sua consciência luminosa pesada, não respondeu às demais tentativas de comunicação de seo J. e até parou de piscar. Sem mais nenhuma novidade, seo José resolveu apelar para o bom senso e pensar que aquilo era coisa da própria imaginação. Virou de bruços e dormiu. Uma semana depois, cansada do marasmo, a lâmpada resolveu voltar a piscar só para espantar o tédio. Seo J. já recomposto do primeiro susto, sentiu-se determinado a encarar o próprio destino, e fez a mesma pergunta sem dispensar os rococós lingüísticos: “Dizei, novamente o que quereis, oh lâmpada!” “Tua alma, oh José!” (a lâmpada também havia gostado desse negócio de vocativo). Com o coração na mão, seo José enfrentou o medo e começou a perguntar à lâmpada o porquê daquilo, quando seria a sua hora e todas aquelas perguntas que qualquer pessoa faz quando a lâmpada do seu quarto avisa que chegou a sua hora. Por sua vez, a lâmpada se divertia dizendo que se conformasse, que a vida era daquele jeito mesmo, que ninguém fica para semente, que não estava autorizada a revelar a data e a hora exata da partida e por aí afora. Uma bela amizade telepática estava nascendo.

Quando a lâmpada já achava que finalmente tinha encontrado um amigo, a coisa degringolou. Na noite seguinte, a neta de seu José entrou no quarto para pegar os chinelos do avô. Ao apagar a luz, a menina notou o pisca-pisca frenético da lâmpada e gritou na hora para seo J.: “Vovô, essa é uma daquelas lâmpadas vagabundas que a companhia de energia distribuiu?” “É, minha filha, por quê?” “É que lá em casa essas porcarias também nunca apagam. Ficam piscando a noite toda!” Na mesma noite na hora de dormir, a lâmpada, magoadíssima por ter sido chamada de vagabunda e de porcaria, resolveu botar um fim naquele relacionamento. “Morrerás hoje, José Anhaia!”, disparou sem dó, a ofendida. “Anhaia?!” Respondeu seo J. assustado, “mas meu nome é José Divino!” A lâmpada emendou: “Desculpe, foi engano! Assombrei a pessoa errada!” E, sem dar mais explicações, ela parou para sempre de piscar e de teleprosear.