30 outubro 2007

O fiscal - Capítulo II

Dando continuidade à nossa relação lingüística d'além mar, segue o segundo capítulo de O fiscal, a novela publicada simultaneamente nos blogs Diário da Tribo e Belgavista, e escrita por um brasileiro e uma portuguesa. Ana Pessoa segue a história escrevendo do Velho Mundo, eu cá vou representando os lusófonos terceiromundistas e assim continuamos a ponte aquática Tejo-Tietê ou Tietejo.

Aos amigos que conhecem minhas brincadeiras deixo claro que Ana Pessoa existe mesmo, em pessoa e em Bruxelas. Ela não é meu pseudônimo, meu alter ego, minha segunda personalidade, amiguinha imaginária e tampouco uma personagem de minha criação.

Do Fernando fingidor ela é descendente, não daquele que esculhambou o Brasil, mas do que fingia a dor que o poeta sente.

E estamos cá nós
a reescrever a quatro mãos
a língua de Camões.

Manda bala, Ana...

O fiscal
Capítulo II - Ana Pessoa

A palavra autoria explodiu no ar como um fogo de artifício. A mulher gostava que a tratassem por autora e por isso respondeu prontamente "Sim, sou eu a autora!".

O fiscal não a ouvira muito bem porque entretanto a mulher resolvera desembaraçar-se da porta e havia trincos e chaves tilintando contra a madeira. As mãos da mulher eram cheias como balões mas certeiras no toque: em dois segundos estava escancarada a porta e a autora surgia inteira.

Dizia: "Aqui é tudo legal, senhor fiscal!" oferecendo o perfil ao homem para que ele entrasse. E enquanto ela se admirava com a sua frase rimada, ele estava ocupado em interpretar a autora (ainda nem tinha tirado o chapéu nem guardado o seu título de fiscal). Era difícil entender aquela mulher e o homem precipitou-se para o seu bloco de notas, onde escreveu: "má dicção". A mulher repetia "Tudo legal!" e o som do último compasso vinha de um lugar secreto – entre a ponta da língua e a dentição. Era fechado, misterioso, irreproduzível.

Já estavam na sala. A mulher não perdia tempo por o tempo ser dinheiro. Tinha chegado ao Brasil havia anos, morava na Rua Atlântica desde então e logo aprendera a lidar com os brasileiros: não podia falar-se muito com eles, eram demasiado conversadores para o que queriam dizer e a senhora aprendera a ouvir apenas as palavras essenciais dos seus discursos. Naquele caso: "fiscal".

Repetiu muito alto as duas frases do pedaço de papel ("De facto, um óptimo negócio. Compre.") e era como se o som viesse do bolso do homem, pois ele saltou assustado com as palavras da mulher. Não só na escrita mas também na fala, a senhora dizia "facto" com o fonema oclusivo "k" a meio. Estava realmente estupefacto mas, de repente, esqueceu-se deste fenómeno, pois a mulher dissera ainda: "Sente-se, senhor fiscal!". O homem derreteu devagar até ao sofá, vaidoso com o seu novo título de senhor à frente de fiscal, ensenhorando-se no seu lugar. O homem gostava da forma como a mulher dizia "senhor", a vogal vinha fechada e a última nota vibrava discreta, nem a mais nem a menos, um "r" verdadeiramente elegante, impossível, inimaginável.(continua no Capítulo III)

29 outubro 2007

A Greve das Vacas

Era um país em que se mamava muito. Mamavam nas ruas, nas calçadas, nas repartições públicas, nas privadas, nas praças, nos bancos, nos cofres dos bancos, nas câmaras e nas antecâmaras, nos palácios dos governos e até nos tribunais. Era senador mamando em jornalista que mamava em empreiteiro que mamava em cofre público que mamava no povo. Cada um contava com as suas respectivas tetas que, para o cumprimento do ato de mamar, não eram as próprias, logicamente, mas as de outrem ou “outrens” dependendo da capacidade sugadora do mamífero.

Um senador, por exemplo, podia contar com um rebanho leiteiro gigantesco, enquanto um vereador de cidade pequena sugava no máximo umas oitocentas tetas por dia. Para ser prefeito, governador ou presidente o sujeito tinha que ser lactodependente a ponto de sugar quantidades exorbitantes em uma única mamada. As tetas mais magras eram a dos pobres os quais eram mais sugados do que sugavam. Por mais secas que fossem, as tetas dessa parcela da população sempre eram cada vez mais espremidas, graças às leis que vereadores, deputados e senadores inventavam para extrair sempre mais uma gota daqueles que não mamavam nada.

Tudo escorria muito bem para os grandes mamadores até que um empresário espertinho passou dos limites. Para garantir uma mamata maior, ele adicionou soro e soda cáustica ao seu produto que, por coincidência, era o leite. Não aquele leite que os poderosos sugavam, mas o líquido branco que saía do úbere das vacas e que de vez em quando parava na mesa dos pobres. Foi aí que o latão entornou. Inconformada com a adulteração do fruto de suas glândulas, a parte mais consciente e lúcida da sociedade resolveu reagir. As vacas se uniram e fecharam o fluxo de suas mamárias. Nenhuma gota seria outra vez ordenhada naquelas tetas.

Os mais afetados pela greve foram, é claro, os pobres. Os grandes mamadores contavam com tetas demais para sentir falta de um líquido branco calcificado. Enquanto isso, na outra ponta da cadeia alimentar, sem leite para beber e tendo que dar o seu ao governo, os pobres começaram a contar somente com a própria teimosia para sobreviver. Foi quando um desfavorecido (o governo adorava usar essa palavra para designar um pobre*) foi despertado pelo movimento bovino-feminista. Pela primeira vez em décadas, ele pensou e pensou firme: “e se seguíssemos o exemplo das vacas?”.

A idéia se espalhou mais rápido do que droga na Zona Sul, em poucos dias o povo sem acesso aos lactários de fato, fecharam as torneirinhas dos lactários de direito. Estavam decididos a não deixar mais ninguém meter a mão em seus bolsos. Que arranjassem outros mamilos! E começaram a pedir satisfação dos poderosos. Queriam saber por que as votações que beneficiavam certas figuras tinham prioridade na câmara; por que não existia cadeia para quem mamava muito, por que o empreiteiro pagava a conta do senador que pagava a da jornalista que colaborava com o banqueiro... por que..., por que..., por que... ????? As elites começaram a ver seu leite azedando e as antes gordas tetas da nação secando e secando. Chegou o dia em que a mamata finalmente acabou.

Sem acesso aos meios ilícitos, os corruptos perderam o interesse em ocupar cargos públicos e, pela primeira vez, o povo pôde ver governantes cumprirem o que haviam prometido em campanha. Os pobres ficavam cada vez menos pobres e os super-ricos tornaram-se apenas ricos. Podia-se dizer que aquela era uma nação feliz, com exceção da alta incidência de osteoporose, uma vez que as vacas nunca mais cederam o seu leite aos humanos daquele lugar.

Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com a vida real será mera coincidência, mas a maior esperança deste escritor continua depositada nas vacas.

* Por outro lado, ninguém chamava um rico de “favorecido”. Nota do pensador.

25 outubro 2007

Uma Relação de Língua

É com o coração enxaguado nas águas do Tejo e aromatizado com as essências da bacia do Tietê (onde os paulistanos tomam seus banhos tchecos durante as enxurradas de março), que vos anuncio a maior parceria Brasil-Portugal desde que Felipão colocou Portugal acima do Brasil na última Copa e que Zeca Baleiro se juntou a Sérgio Godinho para ficar cantando as velhas que ainda dão no coro.

Menos famoso que Baleiro, o sudestino que vos escreve, Fábio Reynol, uniu letras com a luso-portuguesa menos rica que Godinho, Ana Pessoa, escritora-blogueira e tradutora nas horas vagas. Nasceu assim o projeto Brasil-Portugal, Uma Relação de Língua.

Radicada na Bélgica, Pessoana alimenta fantasias e o blog Belgavista. O nosso primeiro trabalho em conjunto é o folhetim "O fiscal", no qual intercalamos as autorias dos capítulos para assim acabar de vez com o mito de que Portugal e Brasil falam a mesma língua.

E aí? Vamos ficar com a língua de fora ou com a língua de dentro? Com vocês, o primeiro capítulo de "O fiscal":

O fiscal
Capítulo I – Fábio Reynol


Reticente e incomodado foi o fiscal de palavras ter com a portuguesa que usava mal, segundo ele, o português. Muito mais incomodado do que reticente, a bem da verdade, a ponto de deixar as reticências ao largo para atravessar a Rua Atlântica a fim de tirar satisfações com a mulher. A pedra no sapato do homem era um pedaço de papel de pão no qual a mulher havia escrito: “De facto, um óptimo negócio. Compre.”

Eis a razão da hesitação do fiscal: ele não era o destinatário do bilhete. Esse fato o transformava num intrometido e o colocava na obrigação de explicar como o papel que não lhe dizia respeito havia parado em suas mãos. Seu dever de defender a boa língua portuguesa, no entanto, falava mais alto do que a vergonha de assumir a própria indiscrição.

Outro empecilho dessa empreitada era a sua bizarra profissão que, pelo simples fato de ela não ser reconhecida por ninguém com exceção dele próprio, era motivo de chacota e desdém por aqueles que eram interpelados por um dito fiscal de palavras. Mas quanto a isso, ele já estava acostumado e não seria esse o impedimento para cobrar o zelo esperado de uma mulher nascida no nobre berço da língua.

Abra-se um parêntese necessário. A nomeação de um fiscal de palavras se dá, naturalmente, a alguém que conheça a língua, mas principalmente a uma pessoa que acredite que terá autoridade sobre as demais para cobrar e ver cumprir o bom uso da palavra. Em outras palavras, um louco. Fechemos o parêntese.

Lá foi ele, chapéu na cabeça e prova do crime no bolso. Esta obtida de maneira vil e ilegal, como já frisado. Atravessou a Atlântica sem molhar os pés e bateu na porta da casa sentindo ares de uma autoridade policial. A porta entreabriu-se.
- O que deseja? Respondeu a própria suspeita colocando a cara na fresta.

- Minha senhora, eu sou fiscal de palavras da língua portuguesa. Disse ele mostrando uma folha amarela e surrada, a mesma que tinha sido carimbada em cartório e que havia sido rejeitada pela secretaria da Academia Brasileira de Letras e rechaçada pela Embaixada Portuguesa em Brasília, ambas as instituições se recusaram a dar mais combustível a tal insanidade.

- O que deseja? Repetiu a mulher sem se dar ao trabalho de ler o conteúdo da folha.


- Este bilhete é de sua autoria? (continua no Capítulo II)


22 outubro 2007

Perdeu o Rolex? Vá reclamar na mídia!

Tudo começou num cruzamento do Itaim-Fonfom, na capital paulista. Os dois sócios do ramo de comércio de produtos ilegais trafegavam felizes e quase tranqüilos quando foram instigados pelo brilho no pulso de um passageiro de um veículo topo de linha. Como bons businessmen, avaliaram na hora o produto e agarraram a mão do sujeito e a oportunidade do negócio. Encostaram a moto assim que o carro do cliente parou no semáforo:

- Por gentileza – chamaram o dono do relógio – o senhor não estaria interessado em trocar esse seu magnífico e caro relógio de pulso pela sua vida?

- Como não, meus senhores. Ei-lô aqui – respondeu o rapaz, quase satisfeito por trocar um Rolex de dez mil reais pelo direito de continuar vivendo e apresentando programas aos sábados à tarde.

Essa seria mais uma dentre milhares de transações criminosas na maior cidade do Brasil, não fosse o fato de o dono do humilde relógio ser um apresentador de TV famoso casado com uma também famosa apresentadora e pai de quase dois famosinhos ainda não-apresentadores. O caso foi parar nos jornais porque o apresentador disse que o relógio fora presente da apresentadora, a quem ele chamava de “meu bem” (a apresentadora, não o relógio, apesar de este ser inegavelmente um bem).

O bem subtraído (e não aquele com que se casou) virou moeda forte no mercado clandestino do pó, ajudando a movimentar o maior PIB municipal do Brasil. O apresentador voltou ao camarim onde recebeu cartas solidárias de todo o país e a promessa de que ganharia outro relógio idêntico, pois não seria por meros dez mil que ele deixaria de ver as horas. Mas àquela altura o angu já estava quente, a comoção popular foi às ruas exigir uma resposta das autoridades.

Vários outros proprietários de Rolex roubados se juntaram para fundar uma associação. A eles se uniram o Clube dos Abonados com Cartiers Furtados e a Fundação das Vítimas de Montblancs Desaparecidas. Não demorou muito para o movimento agregar os Ex-proprietários de Calotas de Jaguars Roubadas e os integrantes da DNDD (Donos de Nikes Deixados Descalços). A alta sociedade logo percebeu que se não fizesse algo, ela continuaria sendo assaltada tal qual a patuléia. Uma inaceitável falta de respeito com aqueles que consomem todo o caviar Beluga e todas as garrafas de Chateau Le Pin importados pelo país.

Pressionado, o governo decidiu agir. Assim nasceu a primeira Delegacia Especializada em Operações contra Roubo de Abonados (DEORABO). Ao contrário das demais delegacias que não têm dinheiro nem para o cafezinho, na DEORABO a vítima presta depoimento tomando um pró-seco italiano e petiscando um legítimo foigrois francês. Na DEORABO os milionários são atendidos por outros endinheirados, os únicos que sabem o que é perder um Rolex de dez mil reais, uma caneta Montblanc de 50 mil dólares ou um par de chinelos de 80 mil. Perdeu sua LandRover de 400 mil e não quer prestar queixa entre os que perderam um fusquinha? DEORABO. Ficou sem a tela de plasma de 55 polegadas do iate? DEORABO. Um catamarã fechou o seu jetsky em Angra? DEORABO. Graças a essa maravilhosa iniciativa, o cidadão comum brasileiro e assaltado pelo bandido e pelo governo pode aconselhar o milionário que choraminga na mídia a perda do Rolex querido: “DEORABO”!