01 outubro 2014

O xampu acabou!

Esse foi o primeiro alerta que soou me dizendo que eu estava só. Em dez anos de casamento, o xampu jamais havia acabado. Nesse tempo todo, eu nunca precisei comprar uma gota de xampu. Agora, separado, estava eu lá, olhando abestalhado para a estante do banheiro e me perguntando “e agora?”

Era parte do casamento uma divisão harmoniosa de tarefas. Ela cuidava dos itens de toalete, eu ficava com as coisas da garagem. A cozinha, nós dividíamos. Eu comprava os artigos alimentícios de primeira necessidade: Danete, Nutella, biscoitos, queijo, cerveja, refrigerante... Ela se responsabilizava pelos supérfluos do dia a dia: arroz, feijão, legumes, a carne do almoço... De um dia para o outro, estes últimos ficaram órfãos.

O xampu também. Admiti, enfim, que a única pessoa que poderia compra-lo agora estava me olhando com cara de idiota no espelho. Foi aí que me atormentou uma segunda questão: que xampu comprar? “Dãhhh, compre o mesmo que acabou!”, diria você. Quisera eu fosse fácil desse jeito. O xampu era daquela empresa que não gosta de homens, a Natura. Homens precisam entrar na loja, pegar o produto, passar no caixa e ir embora. Simples assim. Mas a Natura tem como missão acabar com a objetividade masculina. Ela não tem loja! Eu estava numa cidade nova e teria de caçar uma “representante Natura”, folhear um catálogo com milhões de batons, sombras e cremes para encontrar um simples frasco de xampu e depois esperar um mês para o bendito chegar.

Quando fomos morar juntos, umas das primeiras perguntas que ela me fez foi: “que tipo de xampu você usa?” “Que tipo de pergunta é essa? Eu uso qualquer xampu, ora!” “Você não pode usar qualquer xampu, o seu cabelo é oleoso!” Caramba, acabava de me juntar à pessoa e ela sabia mais do que se passava na minha cabeça do que eu mesmo. Em pouco tempo, ela dobrou os itens de toalete que eu usava e quintuplicou meus perfumes. “Você precisa de um sabonete facial. É bom passar um condicionador de vez em quando...”. Eu não me atrevia a questionar, afinal ela transitava com tranquilidade naquele mundo misterioso e complexo em que só mulheres e metrossexuais habitam, o universo dos cosméticos.

Um mês depois do fim do casamento, ela passou em casa e eu quis mostrar orgulhoso o xampu que eu tinha comprado sozinho na Mahogany, loja bacana,  pra não ter perigo de levar uma porcaria. “Fábio, o tipo de xampu está certo, mas eu havia lhe falado que os translúcidos são melhores. Esse é opaco!” Verdade. Ela havia defendido por várias vezes a superioridade dos xampus translúcidos, mas eu não havia me lembrado. Comprara um xampu opaco! Mas foi uma semivitória! Antes de conhecê-la eu passaria Omo líquido nos cabelos e nem notaria a diferença. Evoluí de ogro a lorde.

Quando estávamos juntos, sempre dizia a ela que a razão de eu ter me casado era a minha dificuldade de juntar os potes Tupperware às suas respectivas tampas. Quando a união terminou, percebi que aquela brincadeira era uma verdade maior do que eu imaginava. Uns trinta potinhos de formatos e tamanhos parecidos e suas tampas coloridinhas espalhadas pelo armário fazem a tarefa de guardar os restos do jantar uma missão longa e tediosa. Os marmanjos que não valorizam a vida a dois, com certeza, não usam Tupperware.

É esquisito ver, de repente, passar uma semana inteira sem levar nenhuma bronca. A máquina de café tem uma bandeja ajustável. Para tirar um espresso, às vezes, eu segurava a xícara no ar, mania que peguei da máquina do trabalho que tinha bandeja defeituosa. Nessas horas, era inevitável: “Fábio, acerte a bandeja e coloque a xícara nela!” É difícil dizer como é estranho tirar café “aéreo” no meio do mais absoluto silêncio. Nos primeiros dias, eu até olhava para trás cobrando uma censura de alguém que não está lá. Mais bizarro ainda é quebrar um copo sem levar um escalda-rabo instantâneo. A primeira vez que isso aconteceu, fiquei até triste. “Hei, quebrei um copo! Ninguém se importa com isso?”

Não é mole se desapegar das banalidades cotidianas que encheram os meus últimos dez anos. Muitas vezes saía de casa deixando alguém ainda dormindo. Era minha rotina dar uma bicotinha numa bochecha morna que ainda ressonava. Recebia de volta um sorriso vindo do meio do sonho. Era o nosso “bom dia”.

Também não sei o que fazer com mil coisas do universo feminino que sobraram por aqui. Mudei de apartamento e a diarista me perguntou o que era para ser feito com os vasinhos de plantas artificiais, as velas coloridas aromáticas, os enfeitinhos de prateleira... “Sei lá”, respondi, “acho que o departamento de decorações desta casa foi desativado”.

Me acostumei a assistir TV sempre com companhia, mesmo quando a companhia dormia no sofá na maior parte das vezes. A noite terminava com um trabalho danado de levar a pessoa para a cama, mas de repente ficou muito mais difícil assistir TV sem aquela presença morninha ao meu lado.

A despeito desse vácuo repentino de companhia, permaneço sereno e sei que ela encontrará em breve um cara de cabelos oleosos que precisará dos prodígios dos xampus translúcidos e de um sorriso dorminhoco de bom dia. De meu lado, sigo com a esperança de um dia encontrar a tampa do meu Tupperware. Enquanto ela não chega, vou me virando com esse líquido opaco da Mahogany. 

25 maio 2014

Nem um pouco

Estavam um de frente pro outro na mesa do restaurante.
- Tu me amas? - ele perguntou.
- Sim, eu te amo.
- Quanto?
Ela olhou para cima como quem consulta uma memória velha e voltou-se pra ele:
- Lembras quando chegaste de viagem de surpresa e eu lhe servi o último bife que havia em casa? - perguntou ela.
- Lembro, cheguei depois que tu tinhas jantado.
- Pois então. Eu não havia jantado. É desse tanto que eu te amo.
- Tu me amas, mesmo?
- Sim, te amo.
- Como?
Ela olhou pela janela, coçou o queixo como fazia quando pensava muito. Depois, escorregou os dedos pela toalha da mesa e lhe disse:
- Sabes quando eu te dei aquele perfume e me disseste que nem mesmo tu conseguirias encontrar algo tão teu?
- Sim.
- É desse modo que te amo.
Ele baixou os olhos para a mesa quieto, muito compenetrado como se estivesse se alimentando de cada palavra. Então, levantou o rosto numa expressão marota, olhou nos olhos dela e disse:
- Tu não me amas, mesmo, não é?
Ela dobrou a cabeça para o lado bem devagar e seus olhos, fixos nos dele, iluminaram-se de um modo que ele nunca vira antes.  E meneou o rosto de um jeito que o estremeceu enquanto respondia sorrindo:
- Nem um pouco.
Emudeceram ambos. Ela, saboreando cada um daqueles segundos. Ele, repetindo inebriado em seu coração ˜nem um pouco", guardando em si a maior declaração de amor que já recebera.