12 agosto 2008

Arrumando as malas

Ficou sabendo de chofre que iria logo morrer. O médico não fez cerimônia, lhe deu três meses, quatro no máximo, de uma existência quase normal até que o anjo da morte lhe desse um beijo de língua, “que nojo!” exclamou ao imaginar a cena. No princípio, ficou cabisbaixo, revoltou-se, voltou a ficar sorumbático, irritou-se novamente e, por fim, conformou-se. Afinal, ele iria de qualquer jeito, mesmo. Ele só não esperava partir com hora marcada, mas já que seria assim, que assim fosse. Realmente era uma pena, tinha só 52 anos, mas lamentar-se e reclamar aos céus só iria dar um fim triste a uma vida que não tinha sido assim tão ruim. O jeito era arrumar as malas.
Olhou para os objetos de sua casa e pensou o que seria daquilo tudo que juntou ao longo de seu meio século de vida. Mulher, já não tinha mais. Os filhos moravam longe e não dariam tanto por sua falta. Talvez no Natal ou no Dia dos Pais, mas superariam bem. Pensou nos únicos seres vivos que ainda dependiam dele no mundo, duas samambaias, três violetas e uma espada-de-são-jorge. As daria todas à vizinha do apartamento em frente. Olhou para a sua enorme coleção de livros, lembrou de quando comprou ou ganhou cada um deles e jamais havia imaginado que um dia ele mesmo teria de dar um destino a tudo aquilo. Doou-os todos. Olhou para a mobília, a TV, o aparelho de som, o computador, o que faria com tudo aquilo? Uma feira de garagem! Vendeu tudo, até a cama e o colchão em que dormia. Afinal, dormir no chão por quatro meses não iria matá-lo, e mesmo o que iria matá-lo não fazia mais parte de suas preocupações.

Olhou para o apartamento vazio e viu que ainda tinha muito. Abriu uma conta conjunta com o seu filho mais velho. Tirou todo o dinheiro que tinha em sua própria conta bancária e a encerrou. A nova conta o sustentaria pelos próximos quatro meses e o que sobrasse, o filho daria cabo. Pôs à venda o próprio apartamento, impôs como única condição que desocuparia o imóvel depois de seis meses. Encontrou um comprador interessado que lhe adiantou metade do dinheiro, passou esse valor à moça da faxina do condomínio, para que terminasse de construir sua casa. A moça chorou quase sem acreditar no que estava acontecendo. A metade final do pagamento, dizia o contrato, deveria ser dividida em partes iguais e paga diretamente aos filhos.

Olhou para o seu amado carrinho, que por tanto tempo o acompanhou. O pequeno bólido foi reformado, pintado, recondicionado, todo forrado em couro e minuciosamente lavado e cuidado. O que faria com ele? Encontrou um colecionador metódico que cuidaria dele e por um bom preço o vendeu. Doou o valor a um asilo, para que acalentasse os que não tiveram a mesma sorte de poder morrer na melhor fase da vida.

Estava, enfim, sem amarras nem apegos. Completamente livre e preparado para o seu destino e, como nunca antes em toda a sua vida, estava imensamente feliz. Ficou imaginando por que só agora ele havia descoberto a verdadeira felicidade. “Tanto tempo perdido!”, pensou. Mas o prazo para a morte chegar passou e ela não veio. Resolveu então voltar ao médico para saber se ainda haveria um ou dois meses de prorrogação de seu restinho de vida. Qual não foi sua surpresa quando o médico voltou com seus exames e disse que a doença mortal simplesmente desaparecera de seu corpo. Ficou esfuziante, completamente feliz, tinha encontrado enfim, o sentido da vida e, com mais anos à disposição, poderia falar disso ao mundo e fazer as pessoas felizes. O mundo seria outro quando descobrisse a alegria que ele sentiu. Saiu do consultório em disparada, olhou para a sua vida toda que passava diante de seus olhos, mas não olhou para os lados ao atravessar a rua. Foi atropelado por um caminhão sem freio que descia em disparada. Morreu na hora. O motorista do caminhão estava sóbrio, mas o mecânico que reparou os freios, não.

3 comentários:

Giuliana disse...

Oi fábio!
Eu estava no site www.palavrarte.com.br e li um texto seu chamado Admite. Adorei!Percebi então que lá tinha o endereço do seu blog e resolvi acessar. Comecei a ler vários textos e cada um me impressionava mais.
Eu tenho 15 anos, mas quero ser jornalista e adooro ler e escrever.
Não sei se a minha crítica mudará alguma coisa, mas queria dizer que adorei o modo como você escreve, como descreve as coisas e como pensa.
Estarei aqui sempre que puder para ler alguma coisa nova,
continue assim.

blabla disse...

Adorei!
Carismático, envolvente, faz surgir um entendimento e na primeira freada nada brusca o tira de nós.
Cómico.
Fatídico.

Anônimo disse...

Parabéns para ti Giuliana,estás num ótimo caminho.
Melhor companhia seria difícil de conseguir,seja feliz..aproveita e lê "O vendedor de palavras",que foi o texto com o qual "conheci"o Fábio e por conseguinte "O Diário..).!
Sr.Fábio,me desculpe esta "entrada de sola",mas se fez nescessária,fiquei muito feliz ao notar que um menina de 15 anos havia te descoberto.
Coisas boas merecem serem saudadas,..VAI FUNDO GI..!!
Um grande abraço para ambos,mestre e discípula!!
JB