21 agosto 2007

A última grande sessão

Para quem nasceu na pequena Carnópolis na década de 1940, sem televisão, nem motel, o Cine Xavante era a opção para as descobertas do amor. Não dava para fazer tudo, mas chegava bem perto. O escuro da sessão proporcionava o único ambiente lícito privado o bastante para arrancar o primeiro beijo, arriscar as primeiras saliências e se aventurar nas voluptuosas reentrâncias. A depravação no Xavante deixava o filme num quarto plano, o que deve ter feito os Lumière sapatear na cripta ao ver o que fizeram de sua invenção.

A sem-vergonhice se desenrolava em silêncio. Isto é, na medida do possível porque ninguém controla um chilipi ao recolher a baba pós-beijo, ou o discreto nheque-nheque das poltronas de madeira ou até um intrigante funhé-funhé que provocava a mente da audiência desacompanhada que só imaginava os mais insólitos lugares de onde poderia ter partido aquele som.

Qualquer movimento mais ousado tinha de esperar uma cena de ação bem barulhenta. Por essa razão, os faroestes com seus tiroteios e os filmes de guerra repletos de explosões eram os preferidos dos assanhados. Foi numa dessas tentativas de encobrir um nhóinque-reinque seguido de um fichóinque que a coisa emporcalhou de vez e condenou a maior diversão da cidade.

Era uma daquelas matinês de sábado no Xavante. A sala estava lotada. Ademar e Berenice conseguiram o melhor lugar, na última fileira. Na frente deles, ficaram Ernesto e Dinorah, logo atrás dos namoradinhos Adelaide e Jair que estavam em frente às nucas de Lindaura e Rodolfo, que por sua vez sentaram no primeiro corredor antes do próximo bloco de poltronas. À frente destes só a cadeira de jatobá de Horário, o lanterninha.

Ademar foi o culpado. Mal as luzes se apagaram, ele já estava se atarracando à cintura de Berenice. A coisa foi esquentando, os outros casais, se aconchegando e a sala inteira se dividiu entre os que se lambuzavam e os que se divertiam assistindo a pouca-vergonha alheia. O filme só servia para mudar as nuances de luz sobre o verdadeiro espetáculo. Com a testosterona nas alturas, o descarado Ademar só esperou a primeira explosão na tela para aplicar o seu nhóinque-reinque-fichóinque sobre a pobre (mas não menos sem-vergonha) Berenice. O óinque foi perfeito; o reinque, razoável, mas na hora do fichóinque... Ademar – que era halterofilista – agarrou a poltrona de Berenice pelo encosto com tanta força que desengatou a fila de cadeiras. A fileira toda desceu a rampa até o primeiro corredor.

Com o barulho do filme, poucos notaram o incidente. Ademar beijou o ar e logo depois o carpete mofado do Xavante. Berenice escorregou para os braços de Ernesto que percebeu a mudança de mulher logo depois que lavou a orelha de Berê com sua língua e notou um brinco bem maior que o da namorada. Adelaide sabia que Jair não possuía dotes avantajados, mas de repente notou que havia muito menos por lá desde a última vez que ela havia visitado o local. O que ela apalpava era a intimidade de Dinorah, que por sua vez nunca tinha experimentado sensação tão boa.

O coitado do Jair foi a decepção de Lindaura. Acostumada com o volumoso Rodolfo, a moça viu aquela massa desaparecer de uma hora para outra. Pensou que o namorado havia perdido o interesse por ela. Dupla injustiça. Jair estava no auge de seu interesse e Rodolfo, sempre distraído, entregou-se de corpo e alma sem perceber que sua cadeira havia deslizado um degrau abaixo.

Horácio foi quem recebeu os cuidados de Rodolfo. O jovem fogoso agarrou a mão do lanterninha pensando ser a de sua amada e a trouxe ao alto da coxa. Levou uma lanternada em seu parque de diversões. Seu berro foi ouvido da praça. Seo Olavo, o projetista que dormia durante as sessões, acordou assustado e acendeu as luzes.

O constrangimento atingiu até os que não haviam participado da dança das cadeiras. Só se ouviam burburinhos, e zíperes subindo, camisas fechando e gente tentando se recompor. A descompostura no Xavante virou o assunto da cidade. O cinema viu a bilheteria minguar com as famílias proibindo os jovens de freqüentar aquele antro da sétima arte. Em pouco tempo fechou as portas. Os casais se recuperaram do incidente, com exceção de Dinorah que fez questão de terminar com Ernesto. A moça começou a se aproximar de Adelaide que passou a evitá-la a todo custo.

Nunca mais Carnópolis teve outra sala de cinema. Depois de mais de trinta anos, os novos jovens da cidade viajavam para a metrópole vizinha para apreciar a telona. Mas iam só assistir a um filme. Juventude esquisita.

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