21 abril 2009

Dona Felicidade

Dona Felicidade
Fábio Reynol


Felicidade é uma velha baixinha, meio corcunda que andava serelepe lá pelo bairro da minha infância entrando e saindo da minha casa. Conheço-a desde menino, pois me levava ao circo e me trazia chocolates. Pequenina, a velhinha era quase da minha altura de molecote. Mamãe dizia que o tamanhico era para poder caber nas pequenas coisas, onde adorava se esconder. Ela ensinou-me a cantar e a brincar, a correr e a achar tudo bom, mesmo quando nem tudo o fosse. Talvez por isso, muitos tinham medo dela. Diziam que a velha trazia mau agouro e que não era bom tê-la em casa por muito tempo.

Às vezes eu a achava uma velha arredia e antissocial, porque sumia de uma hora para outra e ficava dias sem aparecer. Por vezes, ela tirava férias quando eu mais a esperava. Fiquei sem vê-la quando meus pais se separaram e quando meu irmão foi internado. Foi aí que voltou cínica a dizer que estava no hospital com meu mano. Não acreditei. Para mim, ela tinha ido à Suíça onde, segundo os filmes, estavam as melhores fábricas de chocolate, lugar onde tudo era lindo e não havia tristeza. “É lá que dona Felicidade se refugia nos momentos ruins”, pensava com meus botões infantis.

Conforme eu ia crescendo, os nossos encontros foram se rareando. Não sei bem se por descuido ou desinteresse, o fato é que nem me lembro em que aniversário meu ela parou de ir. Quando me dei conta, ela não estava mais nas festas. Até aquele esperar ansioso pela data tornou-se o fardo de ficar mais velho. “Não sou mais criança”, conformei-me, de modo que não há por que ficar de gracejos com a velha. Mesmo assim, ela aparecia de vez em quando, tomava um chá lá em casa e ia-se embora para voltar sabe Deus quando. Eu tinha de aceitar, Felicidade estava ficando cada vez mais velha e eu já era adulto o bastante para perceber isso.


Até que um dia aconteceu o pior. Numa tarde de abril, dona Felicidade desapareceu sem deixar notícias. Consternado, fui atrás dela e só então me dei conta de que eu nunca havia perguntado o seu endereço. Bati de porta em porta, e os vizinhos me diziam que não era ali que ela morava. Todos contavam a mesma história: “eu só a via passando pela rua, entrava de vez em quando para um café e logo ia embora”. Descobri que a velha fazia nas outras casas o mesmo que fazia na minha. Ela vivia sem paradeiro.


Depois de velho e há tempos sem notícias da Felicidade, decidi ir à Suíça, onde presumi estar o seu túmulo. “Óbvio, a velha se encheu desta gente pequena e foi passar a aposentadoria nos Alpes, onde deve ter morrido”, imaginava eu. Lá encontrei realmente as melhores fábricas de chocolate do mundo e cenários de encher os olhos, só não encontrei Felicidade. Muitas pessoas de lá jamais tinham ouvido falar dela, o que foi um verdadeiro susto para mim que pensava ser aquela a terra natal da velha. Decidi então andar pelo mundo, mas não encontrei seus rastros. Passei por montanhas magníficas e atravessei mares exuberantes e se por eles passou, Felicidade não deixou pegadas. Para mim, a velha senhora era agora somente um punhadinho de lembranças.


Mas como a vida tem sempre um bombom escondido nos armários mais improváveis, muito tempo depois decidi revisitar o meu velho bairro e entrar na casa da minha infância. A construção estava carcomida pelo tempo, abandonada, com paredes descascando e janelas quebradas. Sob a sinfonia das madeiras rangendo debaixo dos meus pés, fui entrando e redescobrindo o meu velho mundo. Ao chegar na cozinha, estava lá, atrás de uma xícara fumegante de chá e de uma caixa de chocolates suíços, a senhora Felicidade, ainda tão faceira e menina como sempre.


- Por onde a senhora andou? – perguntei assustado – Procurei-a por toda parte!


- Estive onde sempre morei, meu caro. No quartinho dos fundos da sua casa.

4 comentários:

MC 4U disse...

sem tirar nem pôr, me encaixei direitinho nesse texto, assim como a maioria dos adultos.
nossas infâncias foram e tbm serão para os pequeninos, cheias de momentos felizes...
parabéns pelo texto e vida longa ao blog!

Professora Gianna disse...

alegoricamente belo...gostei muito..inclusive, peço licença de utilizá-lo, posso?

Fábio Reynol disse...

Oh, minha cara Conto Sem Fada. Apanhe quantos textos quiser para pendurá-los em sua página. Só não se esqueça de não arrancar a etiqueta para que outras pessoas possam vir até aqui para colher mais textos. Seja bem-vinda e é uma honra tê-la como seguidora.
Um grande abraço,

Fabio Reynol
www.diariodatribo.com.br

Fábio Reynol disse...

MC 4U, Obrigado pelo post e pelos votos! Apareça sempre!
Grande abraço,

Fabio